Intenso ou não, todos nós experimentamos: o banzo! O banzo após as férias é terrível! Quando criança a cada retorno das férias de verão vindo da ilha ele aparecia enquanto a embarcação se afastava e eu olhava de um lado a ilha e do outro lado a cidade. À medida que o barco avançava, a ilha reduzia lentamente o seu tamanho e eu me despedia da sua tranquila e divertida vida. Do outro lado, a cidade se agigantava com os seus compromissos. Naquele tempo as férias de verão, para quem passava direto, eram de três meses (dezembro, janeiro e fevereiro) e normalmente aproveitávamos os meses de janeiro e fevereiro pela ilha! Não moro mais em Salvador, mas retorno anualmente para passarmos as festas de final de ano com a família. A ilha ficou no passado, mas a sensação do banzo continua toda vez que me despeço, sendo que agora de Salvador. Poderia utilizar a expressão “nostalgia”, mas me parece demasiado suave para definir a sensação de quando um soteropolitano se despede da sua cidade.

Numa rápida pesquisa na internet nos deparamos que o conceito comum de banzo está associado ao sentimento que os africanos apresentavam quando por aqui chegavam, que significava estar triste, pensativo, atônito. Carlos Haag, na edição 172 de junho de 2010 da revista pesquisa da FAPESP assim define banzo:

Essa tristeza, batizada de banzo, era um estado de depressão psicológica que tomava conta dos africanos escravizados assim que desembarcavam no Brasil e seria uma enfermidade crônica: a nostalgia profunda que levava os negros à morte.

Claro que no mundo de mobilidade atual não necessitamos chegar ao final trágico da morte, pois sabemos que o distanciamento é temporário. Mas, por que sentimos este banzo? Em minha singela opinião talvez seja a forte sensação de pertencimento a um povo, um lugar, quase uma nação.

Alguns costumam entender que a palavra nação está mais associada as questões de territórios, leis, governos e política de um país. Acredito que tudo isto deveria ser consequência de uma outra definição para nação, aquela que está vinculada aos aspectos socioculturais, aos usos e costumes de um povo, as suas tradições. O dicionário Michaelis assim especifica esta definição que mais me identifico:

Comunidade de indivíduos que, embora dispersos em diferentes áreas geográficas ou políticas, partilham a mesma etnia e conservam os mesmos padrões culturais, os mesmos costumes e, às vezes, a mesma religião.

Afinal, quando chego a Salvador ou mesmo quando encontro algum soteropolitano fora de Salvador me vejo no espelho, com todas as minhas virtudes e defeitos. Me reconheço mesmo que perceba distintas peculiaridades entre nós. Quais as razões para isto ocorrer? Aí vai algumas...

Adoramos cores vibrantes, que demonstre toda a luz da cidade e que remeta a uma das nossas raízes: a africana. Podemos estar vestidos ou até mesmo gostarmos de vestir roupas com tons mais sóbrios, mas no momento que nos depararmos com alguém cheio de cores nos identificaremos, nos remeterá ao Sol, ao mar às vezes verde às vezes azul, ao sorriso largo e aos casarões antigos, ao colorido geral da cidade.

Estas cores aparecem nas diversas frutas que encontramos nas feiras livres: umbu, cajá, seriguela, caju, manga, jaca, goiaba... e seus cheiros inebriantes. Todas compradas através de uma medida bem particular: pote pequeno, médio, grande ou mesmo balde. Não há pesagem nem contagem individual.

Falando em cheiros... tem os bons, como o cheiro do mar, da alfazema das baianas, do azeite de dendê... e os ruins como aquele odor inconfundível do Carnaval (mijo, suor e cerveja), que por mais paradoxal que seja, quando estamos no meio daquela confusão, gostamos.

As feiras e os cheiros nos levam a comida... aquela base única do tempero da culinária do Recôncavo Baiano: azeite de dendê, leite de coco, camarão seco, castanha, amendoim, cebola e gengibre. Hum!!! Daí chegamos nas baianas de acarajé com sua indumentária nas cores representativas do seu orixá. Cada um de nós temos uma baiana preferida para ser cliente e quando compramos em outra nos sentimos cometendo uma traição.

Ao ouvirmos um som de atabaque, de tambor, nosso corpo vibrará e nos lembrará que, mesmo que em alguns momentos o excesso deles nos incomode, gostando ou não, ele nos pertence, faz parte do nosso corpo, está entranhado em nossas almas.

Recentemente um casal de amigos cariocas estava num cruzeiro e fomos os seus anfitriões pelo Centro Histórico. Uma das primeiras observações do nosso amigo foi: “Impressionante! Quando pisamos aqui ‘ouvimos’ a Bahia!”. Achei tão interessante o comentário! É como se a cidade falasse através dos seus tambores, como se tivesse a sua própria trilha musical, facilmente identificada pelos seus e pelos estrangeiros.

Vem deste mesmo casal uma outra observação sobre a nossa forma de ser. Anos atrás, a nossa amiga conviveu de forma intensa conosco (baianos). Um dia me comentou: “Aprendi com vocês a filosofia do relevar!” e seguiu explicando que a nossa sugestão para alguém relevar (releve!) uma determinada situação era mais que uma simples palavra, era uma forma de encarar a vida, de empregar energias no que realmente faz diferença. Achei linda a definição! Como a praticamos de forma herdada tornasse algo intuitivo e nem nos damos conta desta racionalização.

Voltando ao Centro Histórico, sempre nos depararemos com alguma Roda de Capoeira e nos deliciaremos! Perceberemos que ali está a expressão de luta, música e dança. Esporte e arte juntos! Lembraremos que onde quer que estejamos, ao vermos uma Roda de Capoeira, ela nos remeterá à Bahia. O que nasceu como artificio de camuflagem do que originalmente era uma luta se transformou em mais um símbolo da nossa existência. Heidi Strecker no caderno Educação do UOL assim define:

... para não despertarem suspeitas, os escravos adaptaram os movimentos da luta aos cantos da África, fazendo tudo parecer uma dança. A capoeira foi ficando do jeitinho que ela é hoje, gingada..."

Uma lástima que a Capoeira não tenha sido a modalidade representativa do Brasil nas Olímpiadas do Rio de Janeiro em 2016!

Os aromas da culinária baiana e os sons dos atabaques e agogôs nos recordarão o Candomblé e seja você adepto ou não, simpatizante ou não, lembrará que está religião também é uma das expressões da nossa baianidade, de como reconhecemo-nos ou como reconhecem-nos.

Toda esta matriz rítmica nos remeterá a música produzida ou inspirada na Bahia. Nos lembrará de dezenas, talvez centenas de compositores e cantores... a lista é grande, então escolha aqueles que mais admira... Esta mesma música foi capaz de gerar, por exemplo: (i) um Carnaval profissionalizado; (ii) um mercado de showbusiness próprio; (iii) um movimento de autoafirmação e conscientização negra consistente e profícuo através dos blocos afros; e (iv) estúdios de gravação locais.

Em outros campos das artes, encontraremos excelentes destaques na literatura, artes plásticas, cinema... Destaco dois das artes visuais: Carybé e Pierre Verger. Nenhum desses dois são baianos, mas com uma capacidade ímpar de se incorporar em nossa cultura e nos traduzir.

Alguns mais outros menos, mas conhecemos um pouco da nossa história, seja através dos monumentos e construções da cidade, dos livros ou de forma oral. Sabemos onde os portugueses desembarcaram quando por aqui chegaram; para que se pretendia servir os fortes espalhados pela cidade; onde foi fundada a primeira faculdade do país (a faculdade de medicina); e mesmo que não conheçamos muito a viveremos intensamente através das homenagens aos heróis do Dois de julho: dia da Independência da Bahia! No livro 1822, Laurentino Gomes1 assim define este evento:

Nenhum estado brasileiro comemora a Independência do Brasil com tanto entusiasmo quanto a Bahia. As diferenças começam pelo calendário. O feriado de Sete de Setembro, (...), é ignorado pela maioria dos baianos. A verdadeira festa acontece no dia 2 de julho, data da expulsão das tropas portuguesas de Salvador em 1823. (...) milhares de pessoas saem às ruas para participar dos festejos. (...) Em todo o percurso, os moradores enfeitam suas casas, estendem faixas sobre as ruas e reúnem amigos para celebrar. (...) O carro principal mostra o Caboclo, símbolo do sentimento nativista, matando a serpente, representação da tirania portuguesa em 1822.

Os visitantes tendem a enxergar as nossas comemorações apenas como festas, porém nós entendemos que todas elas possuem um significado próprio, onde reafirmamos a nossa história e nossa fé numa mescla das tradições católicas e do Candomblé, uma declaração de amor a nossa cidade e nossos costumes... Procissão do Bom Jesus dos Navegantes, Lavagem do Bonfim, Festa de Iemanjá...

Agora me diga, considerando esta rápida pincelada, como não ficar com um banzo da porra?!

Chegamos então em nossas expressões bem particulares, começando com a porra e seus diversos significados, meu rei, cacetinho, vara, barril, embucetado e por aí vai... Sem que necessariamente estas palavras signifiquem palavrões, pois quando queremos soltar um palavrão mesmo gritamos bem alto: Que pooorra!!!

Mas tranquilo, depois passamos na Igreja do Senhor do Bonfim e pedimos perdão, agradecemos as bençãos alcançadas, amarramos uma fitinha no braço e tudo bem. No caminho também podemos parar no Santuário de Irmã Dulce (ainda a chamamos de Irmã quando o correto agora é Santa) e pedimos que ela interceda por nós. Afinal Oxalá nos guia!

História, cheiros, cores, sons...

Até o próximo reencontro Salvador!