Na filosofia, afirmar a evidência tem um grande marco em Descartes, embora essa afirmação faça tudo depender exclusivamente do pensamento, das ideias. René Descartes era um convicto racionalista e o criador da célebre frase, hoje um clássico: “penso, logo existo”. Para ele, a razão era o que definitivamente afirmava e validava a existência, ou seja: sabendo-se pensante, o sujeito sabia-se existente. Mais tarde, cem anos depois, o filósofo escocês David Hume, igualmente debruçado sobre a questão de como se conhece e do que existe como primário ou secundário no processo do conhecimento, se opunha ao colega francês afirmando a importância da experiência no processo de conhecimento humano.
Hume dizia que todo o nosso conhecimento decorre da experiência sensível, e ainda que nada existe na razão que não tenha estado anteriormente na experiência. É o poder da experiência, da sensação, é o empirismo.
Contrários, partindo em direções opostas, ambos, entretanto, valorizam o que se pensa, o que se sente, e consequentemente tudo é comandado pelo eu, seja pensando, seja sentindo. Essa maneira de explicar o que se pensa, o que se sente, tudo confluindo para o eu, equivale psicologicamente ao que conceituo como autorreferenciamento, que no decorrer da vivência estrutura o indivíduo isolado, que descobre ser ponto de partida e chegada de tudo que ocorre em sua vida e à sua volta.
Primado de ideias, primado de experiências, ou primado de desejos, futuros e realizações, tudo isso é o que isola o indivíduo do mundo. Perder de vista a continuidade e globalidade dos processos é sempre estabelecer pontos de ancoragem ou de fuga. As certezas, incertezas e dúvidas resultarão do que se pensar ou sentir. O indivíduo acha que traz em si todas as condições de estabelecer critérios para o que é verdadeiro e para o que é falso. Acreditar, por exemplo, que é enganado por todos à sua volta e que ninguém o valoriza, ou acreditar que é o centro dos acontecimentos gera delírios de onipotência ou de impotência, que funcionam como coletores de experiências, triturando-as com pás de raiva, inveja e vingança.
Descartes duvidava de si mesmo (e só se reencontrava nessa dúvida que o afirmava, pensando). Hume achava que nada garantia o amanhecer no dia seguinte, salvo a repetição de sua experiência. Em algumas vivências, o indivíduo sozinho, autorreferenciado, isolado em si mesmo, apenas se descobre quando, por mil artifícios consegue aceitação ou rejeição. Ser considerado não basta, ele pensa que deve haver um motivo, uma vantagem para o outro, por exemplo, que faz sinalizar esse comportamento. Para o autorreferenciado, descobrir as motivações alheias é, assim, a única maneira de garantir a própria sobrevivência. Nesse processo, cria-se medo que se transforma em pânico. Não há participação, existe apenas expectativa, desespero e até mesmo maldade, e assim, é na maldade, na maledicência, na violência que o outro é alcançado e submetido. Ser o controlador, o ditador das regras é o que garante certeza ao indivíduo autorreferenciado. Isso às vezes é feito por meio do acúmulo de informações, do acúmulo de simpatia e até mesmo da continuidade de “likes” e votos para presidir o clube, o condomínio, a cidade, a nação, enfim, a atual network. O poder é a transformação que condiciona, sustenta e garante ao autorreferenciado, o isolamento. É a prepotência, é a carência, é a diplomacia e gentileza que tudo escondem, atravessam e mantêm.
Pensamento e experiência como referenciais predeterminados nada explicam além de estruturar a priori e metas: insatisfação, medo e carência do outro, de si mesmo, do mundo. Expectativa e realização nada garantem, salvo compromissos, limites e desesperados anseios para manter conquistas, desejos e ilusões.
Voltando à filosofia, Hegel, com a dialética e a visualização da continuidade dos processos, rompeu o elementarismo das ideias, da experiência e sensação antes imaginadas por Descartes e Hume. O ser humano, indo além, estabelecendo continuidade entre o que sente e pensa, pode, pela apreensão de contradições, realizar questionamentos, aceitação e não aceitação, realizar mudanças e assim viver com os outros enquanto evidência que configura certezas, que permite continuidade. Desaparece o medo, surgem caminhos, aparecem encontros.