Na cultura humana de todos os tempos, sempre que se viveu em coletivo, estabelecendo sociedades, sejam elas tribais, primitivas ou digamos avançadas, a punição por transgressões foi implementada.
O indivíduo que não respeitasse certas regras era punido por sua falha, fosse com castigos físicos, rejeição e isolamento por parte do grupo ou mesmo a morte. Claro que, se por vezes a falta fosse clara, também podia ser relativa, pois dependia de valores e sistema de crenças vigentes à época. Se o roubo e o estupro são tidos como faltas graves em praticamente todas as sociedades de qualquer tempo, por outro lado, por exemplo, coisas como conhecer de ervas e ciclos da natureza em certos momentos da humanidade foram consideradas bruxaria, o que podia levar a pessoa a ser sacrificada, pois ela mexia com coisas que a maioria não entendia e temia.
Da mesma forma, pense nos tempos atuais; um motorista que atropela e mata alguém não é visto como um homicida e quase nunca é preso, sendo aceito pelas convenções que foi “apenas um acidente”, muitas vezes este motorista conta ainda com solidariedade da sociedade e culpa-se o pedestre “que devia estar no local errado, com certeza”. O julgamento sempre existiu, mas pode ser relativizado e assumir diferentes formas no decorrer da história, dependendo dos interesses defendidos em seu tempo. Nem sempre aquele que com ferro fere, com ferro é ferido.
Antigas formas de castigo versus as novas
Apedrejamento, forca, guilhotina, empalamento, afogamento, linchamento, fogueiras ou ser jogado num vulcão eram (são?) formas de punição usadas desde tempos imemoriais até bem recentemente como medida de correção e coerção deste coletivo chamado sociedade. Essas ações tinham por objetivo não só dar uma lição ao infrator, mas também de dar exemplo aos demais do que podia acontecer a eles caso arriscassem cometer uma quebra “da lei”, fazendo assim o coletivo se manter coeso, produtivo e claro, pacífico.
O próprio conceito de polícia surge na infância da humanidade pela necessidade de haver um grupo legitimado que vigie os demais e garanta que as coisas aconteçam “em ordem” e não haja quebra das regras para a vida em multidão.
Comportamento; comportar seus instintos, frear seus desejos, manter-se em estado onde se regra suas inclinações. Podemos dizer que se nossas vontades fossem um líquido fervente o comportamento seria como um copo que mantém essa água turbulenta enclausurada e esfriando. Por isso somos ensinados desde pequenos a nos comportar.
As punições por muito tempo foram uma coisa pública, um evento, uma festa por assim dizer. A força instaurada, fosse ela um governo, um conselho ou um chefe tribal, tratava de mandar realizar estes atos em local comum e à vista de todos. As pessoas se reuniam para assistir à execução do transgressor, a maioria de bom grado e animada, muitas iam à loucura de tanta excitação aplaudindo e gritando, clamando por justiça. Era a vingança, daqueles que se diziam corretos e de bons costumes contra o mal personificado naquele sacrificado. Se olharmos para faceta inconsciente e sociológica de um acontecimento como esse, para a massa que assistia à execução era um êxtase, um transe coletivo. Onde o bestial, o instinto e o fascínio primal pela violência que todos guardamos trancado dentro de nós se realizava. A execução de um bode expiatório servia de exemplo, impunha medo àqueles que tinham ideias, dava a impressão de justiça a alguns que queriam esquecer seus próprios pecados; e todos ficavam aliviados a não ser eles ali sendo executados. E sobretudo o espetáculo saciava as massas em seu desejo de ver o outro pagar.
Sim, o ser humano na maior parte do tempo é calmo e cordial, não somos feras inconscientes, mas quando algo não acontece como esperado as pessoas podem se mostrar altamente animalescas e irracionais em suas decisões.
Mas saindo agora deste ato mais extremo, sempre existiram também outras formas de punição mais sutis. Quando o criminoso não era sacrificado, podia sofrer outras formas de castigo. Ser banido, torturado, marcado com um sinal ou talvez a maior punição de todas: a rejeição de seus pares. Ser considerado vil e sem valor, sofrer olhares e comentários, ser excluído de participar das ações cotidianas e ter má fama sempre foram as mais duras penas àqueles que erraram. Se tornar um pária é a maior punição que uma pessoa viva pode ter, mesmo que ela tente se redimir.
Ordem ou caos? A busca humana de corrigir seus pares
Em psicologia, há o conceito de recompensa e punição, se você age como esperado ganha, se você sai das regras perde. Temos um comportamento induzido a agradar os demais, seja por medo de ficarmos sozinhos à nossa sorte ou para aumentar nossos ganhos. E a própria natureza tem uma tendência à ordem, à organização, que é percebida por nosso corpo e nossa psique, coma bem e você terá saúde, cometa excessos e você ficará doente. Causa e efeito.
Na sociedade, vemos a maior expressão de atos que podem nos levar a ganhos e perdas. É por isso que a maioria de nós evita furar a fila, chutar um cachorro, ou riscar um quadro famoso, é o medo de sermos apontados e rejeitados pelos demais.
A grande questão é que embora hoje a maioria de grupos humanos tenha atingido certo grau de “civilização”, ainda não abandonamos nossas inclinações a punir, a natureza mesmo se incumbiu de nos dotar desse espírito de julgamento, fazendo com que a própria raça aja como um corpo que expulsa um agente estranho do organismo. No fim, ainda somos animais sociais que buscam todos os dias satisfazer suas necessidades básicas com um mínimo de honestidade e eliminando os “trapaceiros” nesse processo.
O apedrejamento social
Mas é preciso refletir. Parece mais que evoluímos imensamente apenas em técnica nos últimos milhares de anos, mas continuamos dependendo das mesmas coisas e nossa mente ainda é primitiva, não havendo grandes sinais de uma emancipação na forma como o homem se põe no mundo.
“Aquele que não tem pecados, que atire a primeira pedra.” Foram as palavras de Jesus num de seus ensinamentos. Muitos líderes espirituais falavam a mesma coisa com outras palavras. No entanto, todos estão com suas pedras nas mãos, só esperando pela próxima falha, pelo próximo transgressor a ser apedrejado até a morte. Veja como hoje as redes sociais se tornaram a nova praça de enforcamento. Ao mesmo tempo que alguns são enaltecidos nessas redes, outros podem ser massacrados seja por uma grande falta ou mesmo pelo menor deslize.
Redes sociais são a multidão que aplaude ou se enfurece. E como dizem, toda turba é ignorante, quando se toma julgamentos em coletivo geralmente abandonamos nossas convicções e senso ético em troca de um pensamento de manada.
Se por muito tempo foram da TV, das revistas e jornais o poder de acabar com a reputação de uma pessoa, hoje é por meio de instas, faces ou similares que se cria ou se acaba com uma imagem. A internet se tornou um palco de status social, nesta terra de ninguém, você pode ser alçado à lindo ou monstro num instante. Nela a opinião pública, antes até da lei, decide quem merece ou não ser visto como “bom” ou “mau”.
Vide quantos ídolos são formados ou destruídos nas redes. Um jovem é alçado à fama por uma coisa banal e alguém com uma carreira sólida de um trabalho sério de repente é o vilão a ser excluído e exilado. É a punição mais contundente que se pode ter, a rejeição social. Veja os tantos casos de depressão e em extremos até suicídios dessa geração que ancora sua vida em likes e fama criada a partir desse palco que é a rede, quando são cancelados pelos próprios que os adoravam e de repente os odeiam.
Quantas pessoas que cometeram erros, pagaram legalmente por eles, mas continuaram depois disso a serem rejeitadas a ponto de não conseguirem seguir adiante e ter a oportunidade de se redimir. No caso de um crime real, as pessoas continuam a ser perseguidas mesmo depois de terem pagado judicialmente por seus erros. Casos assim são muitos, é só olhar.
A mente de multidão nunca é coerente. Por tendência, as pessoas preferem como sempre julgar antes e pensar depois. Primeiro crucificamos e depois podemos chorar (ou nem isso). Afinal, se errarmos na decisão não há um só culpado, logo não há culpado nenhum, e não há peso a se levar na consciência. Tendo isso em vista, vamos refletir o quanto estamos expostos atualmente. Seja você um usuário frequente da internet ou daqueles que nem sabe ligar um computador, está sujeito da mesma forma a uma exposição involuntária da sua imagem, dado que os olhos eletrônicos estão hoje por toda parte. É a era da vigilância e do controle.
O fim da privacidade
George Orwell, na obra 1984, imaginou um futuro em que um estado totalitário monitorava cada passo de seus cidadãos. Ora, ele errou por pouco, na verdade em nosso tempo são as grandes empresas que sabem onde estamos, o que estamos fazendo e o que gostamos, e elas ainda podem repassar isso ao estado.
Num episódio semanal de Além da Imaginação, série ficcional de TV, um homem arrogante condenado por frieza é punido de uma forma instigante. Recebe em sua testa uma marca que o castiga com a invisibilidade, isso significa que ninguém pode falar com ele pelo tempo da pena de um ano, de início ele acha graça nisso, mas aos poucos percebe que esse é o pior castigo que poderia receber. Vigiado por esferas flutuantes munidas de câmeras, ninguém pode falar com ele, então as pessoas passam a evitá-lo, ignorá-lo, pois podem sofrer a mesma pena caso interajam com o “criminoso”.
Perceba a fina ironia, ele não foi enjaulado, pode andar livremente por aí, mas está condenado ao isolamento mesmo estando em meio aos outros, a dor de não ser considerado é sua punição. A história é baseada no conto To See the Invisible Man (Para ver o homem invisível), do escritor Robert Silverberg. Lembro de assistir isso ainda muito pequeno, e aquilo deu um nó na minha cabeça, fiquei pensando em como a sociedade e o governo podiam ser cruéis com eventuais transgressores e como estávamos à mercê da decisão alheia. Mas a história ainda tinha uma premissa positiva, ao final da pena o personagem saía mais humilde e digamos reformado. O que em tese é o que se espera de uma punição é que recupere as virtudes de uma pessoa, mas sabemos bem que isso acontece muito pouco, na maior parte das vezes se você acua um ser humano ou ele murcha ou se revolta ainda mais.
Não estamos tão longe das ficções imaginadas. Saia lá fora e observe quantas câmeras estão apontadas para sua cara. Em tese, câmeras de domicílios teriam que ser voltadas apenas para a fachada da própria casa, porém não há uma lei clara que regule isso, por isso todas são direcionadas para o espaço público, então uma vez que sai na rua você está sendo vigiado, monitorado, avaliado, para o bem e para o mal. Há câmeras em capacetes, carros, paredes, lojas, shoppings, no uniforme da polícia, nas mãos de uma criança.
A imagem e dignidade de uma pessoa são protegidas pela Constituição, colocá-las em situação constrangedora é crime. No entanto, como não há uma lei clara sobre filmagens das ruas, cada um faz como quer. Ultimamente têm surgido alguns postes-totens com várias câmeras apontadas em todas as direções, são plantados nas calçadas por empresas contratadas por particulares. Embora muitos pensem o contrário, a calçada não é uma propriedade pois constitui espaço público, então por lógica não se pode colocar o que bem entender nela. Mas aproveitando as brechas na lei e prefeituras coniventes, esses verdadeiros voyeurs da vida alheia que acham que todo mundo é mal e deve ser vigiado são a nova força de coerção. Agora pense: seja na mão das empresas ou de pessoas, aonde sua imagem pode chegar?
Imagem 1: Câmera filma câmera. Totem plantado na calçada vigia a tudo e a todos. Imagem colhida pelo também onipresente carro da google. Onde sua imagem vai parar? Ou onde vamos parar?
Vigilância, monitoramento e mania de controle
Hoje mais do que nunca, estamos à vista, cada passo nosso. No celular um cidadão preocupado com seus bens materiais observa você enquanto caminha com seu cachorro (recolha as fezes). O vizinho filma enquanto você lava a calçada por isso não gaste água. Você está namorando o seu par na esquina e amanhã pode ser o próximo famoso anônimo num site de pornografia. Está caminhando com seu filho/filha pequeno e dá vontade de fazer xixi nele, então você abaixa a roupa dele atrás de uma árvore para que se alivie, a câmera filmando, Deus nos livre de onde essa imagem pode chegar. Talvez você ache que estou exagerando, mas a realidade é mais estranha que a ficção. Desde que se acorda já estamos sob avaliação, nenhum ato passa despercebido, e toda falta toda nudez, será castigada.
Uma pessoa foi atropelada ou ferida a bala e a coisa mais (in)útil que a maioria faz é sacar de um celular e filmar a agonia daquele ser vivo em seus últimos momentos.
Não há área não coberta. Os drones buscam o que é inacessível. O reconhecimento facial dará conta de te achar caso se precise. Sua assistente pessoal de voz ouve suas conversas e repassa a companhia na web. Satélites esquadrinham o solo até o teto da sua casa; e o carro do maps fotografa a fachada. Com o avanço da internet das coisas e da inteligência artificial teremos logo os objetos inteligentes e aí diga adeus de vez a sua privacidade, a sua falsa noção de individualidade, ao seu momento consigo mesmo.
É o olho público que tudo vê, tudo (acha que) sabe e tudo julga.
Guarde sua pedra. Seu teto também é de vidro
Embora saiba que muitos defenderão esta vigilância ostensiva tendo em conta uma pretensa segurança, saibam, o preço é alto. Mesmo que você seja a melhor pessoa do mundo, atenção, você pode ser o próximo, inocente linchado, acusado e excluído sem chance de se explicar, pois a pena pode vir antes mesmo que haja chance. Quando perceberem o erro... pode ser tarde.
A qualquer momento sua imagem pode cair na rede, virando desde um meme constrangedor até estar num tribunal virtual. É a era da vigilância e controle, onde todos somos juízes e réus. Mas cuidado! A guilhotina está pronta e pode descer a qualquer momento, nesse jogo se pode ser o acusador, mas a qualquer momento também a vítima.
Quem dera, aqui dessa humilde reflexão, a consciência das pessoas fosse tocada e pensassem mais antes de apontarem seus dedos. Que daqui nascesse nem que fosse uma semente de tolerância, do benefício da dúvida. Mas esse é um caso muito sério, e talvez caiba só a Deus, dono dos mistérios [entre eles o de sermos tão atrasados], ter piedade da humanidade.