A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), criada em 2003, é um dos mais importantes eventos em torno da literatura e de outras artes, na América Latina. Ela acontece anualmente na cidade histórica de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, no Brasil, congregando escritores, palestrantes, jornalistas, intelectuais e um público ávido, a percorrer as ruas irregulares que guardam a história do país. Com o tempo, a programação oficial ganhou a companhia de iniciativas paralelas, compondo a expressão do pensamento brasileiro, em contato com a cultura de outros países.
Em 2023, a Flip homenageia Pagu, como ficou conhecida a escritora Patricia Rehder Galvão. Como lembra o site oficial do evento, Pagu foi “jornalista, dramaturga, poeta, tradutora, cartunista e crítica cultural”, tendo atuado “nos movimentos modernista e feminista”. “O nome Pagu nos leva a lutas estéticas e políticas, alertando para o quanto pode incomodar a coragem de uma mulher que enfrenta a força plena representada por instituições regulamentadoras da vida, da arte e das liberdades.” .
Para conhecermos mais de perto a Festa Literária que homenageia uma escritora, entrevistei três poetas mulheres que estiveram em Paraty, em 2023. A primeira delas, Jane Christina Pereira, é doutora em Teoria Literária pela Universidade estadual paulista (Unesp), com graduação em Letras e mestrado em Literatura Brasileira pela mesma Instituição. Atualmente, é docente no Instituto Federal de Brasília (IFB), onde trabalha com literatura e outras artes.
O que significa encontrar a poesia, quando se percorre as ruas da cidade e os eventos, na Feira Literária Internacional de Paraty?
Quanto tempo dura o fim? De tanto viver tenho morrido muito. A última vez foi há pouco. Na Flip 2023, a poesia era não era só tema, mas também corpo. Corpo da palavra, do livro, do escritor, do leitor, o corpo da gente ali atravessado por fendas e delírios do tempo. O futuro cósmico desenhado por Augusto de Campos, que nos devolveu Pagu, se misturava a centenas de escritores num diálogo infinito em duzentas casas do centro histórico de Paraty. Eu pisava devagar naquelas imensas pedras pesadas, movidas pela força de uma ancestralidade muito viva em vários escritoras/es que, enfim, estavam na FLIP. Elas/es me contaram que as ruínas do passado de um povo podem ser reconstruídas com palavras. A ousadia de Pagu também tinha eco ali naquela galáxia de pessoas entregues a uma espiral delirante. Mas nada era por acaso, todos estavam ali de propósito para aplaudir Conceição Evaristo quando ela apontou no fim da rua, para viver a cumplicidade do desejo pelo intangível e misterioso prazer poético, para esperar na fila por duas horas para ouvir e ver os escritores, que se tornaram ali canais e gritos. Estávamos ali de propósito: Adriana Calcanhoto, Aline Bei, Socorro Acioli, Glicéria Tupinambá, Tatiana Pequeno, Bruna Beber, Angélica Freitas, Ieda Magri, Paulliny Tort etc. Nós, mulheres, temos um lugar radical de liberdade, que é a escrita, a arte. A Flip e a Flipei, uma oficial e outra não. Entre elas o rio e uma ponte. Muitos atravessavam de lá pra cá, outros não. Era um gigantesco poema psicodélico: todos fustigados pelo calor, a chuva, a queda de luz, o medo, o grito, o riso, a consciência dos pés naquelas pedras, um presságio de que tudo aquilo era uma grande metáfora da nossa própria história. Eu fazia parte de uma emanação cambiante de gentes, vozes, cores, cheiros, formas, ciber espaços-passados que parecia estar em uma constante negociação com a própria cidade. Em algum momento ela nos sinalizou que o nosso excesso é brega. Depois disso, eu quis sentar com Pagu e Augusto para um projeto poético muito ousado: uma estética ética com corpo de liberdade humana.
Um poema nunca tem fim.