Assim como se fosse desde sempre, a quietude da contemplação tem sido uma prerrogativa humana tangente às mais diferentes civilizações, etnias e filosofias. Seres humanos postados diante da imensidão do universo, nossos antepassados entregavam-se a profundas e inquietantes reflexões sobre a existência — de si e do todo. Ao longo dos séculos, porém, os frementes avanços da tecnologia não parecem conspirar a favor de tal hábito.
Mesmo em meio à algazarra das máquinas autossuficientes, pouco espaço restou para divagações e filosofias, tão pouco ao contemplar. Tão logo habituados ao conforto dos novos artifícios, podemos acabar nos esquecendo da nobre importância da reflexão e da crítica, até mesmo em sua forma mais passiva, a contemplação. Assim caminhamos como humanidade, em vertiginosa ascensão tecnológica, trocando a introspectivas serenidades por delirantes produtividades.
Urge, quem sabe, ao nosso tempo e a nossa geração, resgatar o ócio fecundo que nos permita divisar um horizonte além das imediatas necessidades e exploração descontrolada. É tempo de reaprender o antigo ofício de simplesmente existir, antes que nos tornemos estranhos para nós mesmos. Delimitada a ótica, neste texto convido você, leitor, a uma reflexão sobre o tema. Durante sua leitura, você confere:
- Contextualização histórico-filosófica do ato de contemplar desde a Antiguidade e seu valor para o autoconhecimento.
- Discussão sobre pensadores, como Platão, filosofias orientais, como o budismo de Sidharta Gautama e suas reflexões sobre o papel da contemplação.
- Reflexões sobre a evolução da IA, o ócio e seu potencial impacto na capacidade humana de contemplação.
De forma alguma este material pretende esgotar um tema tão amplo e profundo. O objetivo é lançar perguntas e perspectivas, na esperança de inspirar novas ideias. Trazer para reflexão as relações entre tecnologia, sistema econômico e contemplação é um exercício necessário e poderá ser enriquecedor para nós, seres compelidos a existir no turbulento mundo contemporâneo.
Ao final, caberá a você tirar suas conclusões e contemplar seus próprios pensamentos sobre o assunto. Espero que tenha uma boa leitura.
A contemplação na cultura humana: filosofia, religião e ócio
O ato de contemplar acompanha a humanidade, tangenciando os mais diversos espaços. Ao longo dos séculos, homens e mulheres debruçaram-se silenciosamente sobre o mistério da existência, buscando respostas para questões que ainda não conheciam. Preconizado pelos imortais, como Platão e Aristóteles na filosofia ocidental, a contemplação do universo que nos circunda associou-se à busca pela verdade e pela sabedoria absoluta. Já no oriente, vinculou-se às práticas meditativas e de atenção plena, enfatizando a consciência do momento presente.
Em todas elas o contemplar ocupa um lugar de destaque na jornada humana em busca de verdades e até mesmo da felicidade — Sidarta, o Buda, mostra-nos, por meio do Dhammapada que ao contemplarmos o universo com a mente serena, é possível desenvolvermos a capacidade de observar nossos pensamentos e emoções com imparcialidade, sem apego ou aversão.
Assim, a contemplação nos permite enxergar a realidade como ela é: transitória e em constante devir. Compreendemos dessa maneira o caráter efêmero dos fenômenos mundanos. Verdades que apontam o caminho para a superação do sofrimento e angústia existencial humanas, exigidas para a evolução tanto do ser em si quanto como civilização.
Já, por outro lado e trazendo um contraponto à agitação contemporânea, a contemplação ressurge no ócio como um remédio para mentes hiperativas. Recolher-se, perscrutar verdades e emoções, atender aos chamados do coração e da intuição — eis algumas formas de encontro consigo mesmo propiciadas pela contemplação no lazer.
Mas, desde a Revolução Industrial, principalmente, o elogio a um ócio contemplativo foi substituído por necessidade de maior produtividade. Ócio e preguiça, agora, são quase sinônimos.
O impacto do sistema econômico na valorização do ócio como fonte de mudanças
No contexto capitalista, a valorização do ócio contemplativo muitas vezes é negligenciada, relegada a um segundo plano. O sistema econômico atual, pautado pela busca incessante pelo lucro e pela eficiência, coloca o trabalho produtivo como o valor máximo, deixando pouco espaço para ações contemplativas e refletindo uma sociedade que está sempre correndo, sempre ocupada.
Por sua natureza predatória, em tal modelo econômico valoriza e recompensa a produtividade constante, levando às pessoas a dedicarem seu tempo e energia a atividades que gerem rendimentos. O ócio passa a ser visto como preguiça, desperdício — relegando a contemplação a um plano secundário ou aos executivos e stakeholders.
No entanto, dadas as circunstâncias, é preciso atentar para o fato de que essa visão limitada do ócio vai de encontro à própria essência humana.
A contemplação, a introspecção e a reflexão são elementos fundamentais para o desenvolvimento intelectual, emocional e espiritual das pessoas. É por meio desses momentos de quietude e serenidade que somos capazes de fazer conexões profundas com nós mesmos, compreender nossas emoções, questionar nossas convicções e expandir nossos horizontes.
As tecnologias, em particular, podem ter um papel fundamental nesse contexto. Elas são ferramentas que nos proporcionam o desenvolvimento exponencial de nossas capacidades. Todavia, devemos ter cautela e estar atentos ao modo como utilizamos essas ferramentas. O mau uso das tecnologias pode nos afastar ainda mais da contemplação, nos mantendo presos a um ciclo constante de distração e superficialidade.
Nossas redes sociais, por exemplo, podem se tornar grandes vilãs ao nos manterem imersos em um mundo de estímulos fragmentados, roubando-nos o tempo que poderíamos dedicar à reflexão profunda e ocupar o lugar de um “ócio produtivo”.
Mais tempo, mas menos ócio
A partir do avanço inexorável da Inteligência Artificial e dos processos de automação de quase tudo, têm gerado profundas mudanças comportamentais na sociedade moderna. Ao assumir funções cognitivas humanas, como criatividade e resolução de problemas complexos, a IA, principalmente, afeta nossa autopercepção e propósito existencial.
Consequentemente, práticas introspectivas e contemplativas secularmente valorizadas rareiam-se: é mais simples e mais fácil produzir por meio dessas ferramentas por conta da maior produtividade e ponto final. Não pense, produza — será a nova demanda?
Pode ser que muito disso se deve ao fato de que o ócio propiciado pela tecnologia, dada sua agilidade nas produções, sejam expressivas, como a arte ou profissionais, como peças de publicidade, frequentemente se converte em maior consumo tecnológico, fomentando um ciclo vicioso alinhado aos interesses do capitalismo de vigilância.
Em vez de práticas de contemplação, observa-se dispersão mental e dependência digital crescentes. A sabedoria advinda da introspecção é eclipsada pela dopamina liberada pelas redes projetadas justamente para promover vícios comportamentais alinhados às práticas sociais cotidianas, como se todos os outros problemas já não fossem o suficiente.
Muito embora ferramentas como as novas IA’s gerativas tenham aplicações benéficas, seu potencial para alienar os indivíduos de sua humanidade também preocupa filósofos contemporâneos. É preciso atenção para que seu uso ético aproxime, e não afaste, os seres humanos das ricas práticas contemplativas na era digital. Iniciativas para um equilíbrio, como a desconexão consciente do trabalho, são louváveis. Porém, são urgentes políticas públicas que garantam o florescimento humano integral, para além dos estreitos interesses corporativos.
É preciso resgatar os frutos de simplesmente ser, sem pressa ou agenda — a contemplação convida à serenidade, e esta, à sabedoria, tão necessárias para uma evolução humana consciente e duradoura.