Nestes últimos meses temos sido invadidos por reportagens, lives, debates e artigos sobre inteligência artificial (IA). Tornando-se um dos temas mais importantes de 2023, a questão da inteligência artificial é assunto diário. Como sempre, o maniqueísmo, a polarização impera nos debates. Para muitos, falar de IA é falar dos males que ela ocasionará no futuro próximo, como o desemprego, as ameaças e os erros de programação; para outros é a redenção da humanidade, pois a IA realizará o trabalho difícil, e além disso, as minúcias impossíveis de alcançar e operar serão resolvidas ou possibilitadas com IAs melhorando diagnósticos médicos e associações de dados em pesquisas científicas, por exemplo.
Sempre antropomorfizada, a inteligência artificial é vista como amiga ou como inimiga... mas, o mais preocupante é ser antropomorfizada. Esse virar pessoa, ser constituída como pessoa é quase uma desistência nossa de nossa humanidade. Imaginar que uma máquina, um programa de computação se torna símile do humano é plausível, pois já assistimos à criação de mãos e pernas mecânicas, ouvidos ultra desenvolvidos etc. mas pensar e afirmar categoricamente que a IA é um quase humano é negar nossa humanidade. Como chegamos a isso? No contexto do Capitalismo Neoliberal, nós humanos fomos transformados em produto. Essa transformação não é uma realidade, visto que nada efetivamente nos destruiu enquanto humanos, mas nos anulou, nos protegeu, enquadrou e inseriu em um sistema no qual significamos em função de ganhos, lucros e produtividade. Essas extrapolações econômicas envolvem e amordaçam a humanidade. Surge a coisa, o alienado, tão bem descrito por Hegel e explicado por Marx.
Existem, ainda, as pequenas ilhas de humanidade, lutando contra massificação, alienação e despersonalização. E existe também o acúmulo constante de desumanização, despersonalização, alienação, e assim se gera a humanidade submetida, esmagada pela indústria de armas (guerra), de remédios (saúde) e alimentos, por exemplo, sendo já há muito, um criadouro de humanidade artificial. Nesse contexto, a inteligência artificial vai trabalhar melhor, vai “pensar” exato, realizar tarefas sem custos, sem medo, sem sindicatos, sem lutas ideológicas e identitárias. Não ter reivindicações, nem existir nada que as possibilite, é o ideal para o reino do artificial, do fabricado, do apenas eficiente, enfim, do executor de ordens. Conviver com tudo isso é bom, é ruim, é novo e é velho. Vai trazer segurança, tanto quanto empecilho. No entanto, o grave é que vai transformar o outro, nosso semelhante.
Um dos conceitos fundamentais que desenvolvi na Psicoterapia Gestaltista, é o de que o outro me constitui; eu sou o que o outro me permite ser. Essa ideia é a base dos processos de aceitação e de não aceitação de si enquanto ser no mundo com os outros; é o que nos estrutura como sujeitos. É o olhar para si mesmo a partir do olhar do outro. É exatamente aí que se estrutura medo, liberdade, aceitação, não aceitação, confiança, desconfiança, enfim, é assim que se estrutura personalização/despersonalização. O outro, o semelhante, inicialmente pai/mãe, pode nos situar no mundo enquanto possibilidades, perspectivas, questionamentos transformadores, ou nos transformar em objetos, seres alienados e comprometidos. Portanto, psicologicamente, enquanto imanência relacional, o outro me constitui em estar aberto para realização de possibilidades ou escorado na satisfação das próprias necessidades.
O momento que vivemos é um marco: daqui por diante, o outro será a máquina, o robô, o programa de computação, que não é nosso semelhante. O outro, a IA, poderá ter aparência humana que esconde sua programação. Essa realidade é bem diferente da que tivemos até o presente, mesmo que o outro tenha sido um humano alienado e mecanizado, era um outro semelhante, um humano.
O outro, agora é um robô, uma máquina, um programa computacional. O outro é o criado por mim. Essa é a grande questão. Solipsismo de Berkeley e literatura borgeana, por exemplo, não conseguem abranger, nem identificar isso. O outro, por mim criado, faz com que eu seja o que o outro me permite ser: a máquina, minha criação. Questionamentos ontológicos, questões humanas e psicológicas se tornam obsoletas, assim como a antiga e sempre atual questão do Ser ou não Ser. As reconfigurações esvaziam ao realizar possibilidades. O eterno querer ser sempre respondido pelo outro, pela configuração de desejos que ultrapassam limites e estruturam possibilidades, agora é contingenciado, explicado e determinado pelos programas computacionais estabelecidos. O outro é a máquina e ela tem limites, pois apesar das aparentes infinitas possibilidades de arranjos e combinações programáticas, ela está sempre esgotada pelo além de si mesma: a programação que a estabelece é alienante, sem vida – não é uma célula orgânica, é um byte.
Muda o mundo: a matéria orgânica não é mais o produtor de vida; vida passa a ser resultado de byte, peças, chips. É uma vida que abrange muitas áreas, desde que tudo é exponencialmente apreendido e configurado. É bom, é ruim, não é o outro semelhante a mim, é o não-semelhante, o estranho, o diferente, o não humano parecendo humano. Essa é uma grande questão filosófica e psicológica que teremos que enfrentar, ou quem sabe... IAs as resolverão, e nós seremos as máquinas humanas, agora reconfiguradas e com programações bem mais aprimoradas, bem mais difíceis de destruir.
Atualmente, chamamos de monstro inimigo tudo que apenas obedece comandos inalcançáveis e pode nos destruir. O surgimento e desenvolvimento contínuo da inteligência artificial como interlocutor antropomorfizado é o próximo passo de nossa despersonalização, desumanização e transformação em objetos reféns de sistemas. Por mais atrativo e lapidar que seja esse início, é também lápide sobre o outro enquanto meu semelhante; nesse novo mundo, o outro não é mais meu semelhante.
A mudança no meio ambiente, resultante do desenvolvimento industrial que extinguiu jardins (lembram da tese de Epicuro?), que destruiu florestas, mares e alterou sistemas climáticos terá seu equivalente agora na transformação e esvaziamento do humano. O relacionamento com o outro, com o mundo, consigo mesmo, as cogitações e descobertas serão muito diferentes e mudadas pela existência do pensante fabricado, ultrapassando inimagináveis limites das possibilidades humanas.