Os rastros contam sempre uma história.
(Carola Saavedra1)
Ainda sob os efeitos da pandemia de covid-19, muitos trabalhos têm sido publicados no-depois, ainda muito recente, produzindo um olhar pelo retrovisor com o intento de compreender e dar uma borda ao vivido. O luto é sem dúvida um dos pontos de maior envergadura nesse esforço recorrente e fundamental.
Com Freud2, sabemos que, no luto, o mundo do sujeito encolhe e diminui de valor frente à perda do objeto amado, que se sabe desaparecido para sempre. Ao mesmo tempo, ele torna-se ameaçador visto que o sujeito deixa de ter o lugar que ocupava na vida daquele que se foi, tendo que se desinstalar à força do modo como se apresentava a esse outro. Essa dupla dobradura do aniquilamento exige um duro e persistente trabalho de fala que começa, em sentido mais prático, nos ritos fúnebres com a presença do corpo morto. Nesse primeiro momento da despedida, é possível olhar pela última vez, tocar a carne inerte, dizer a si e aos outros sobre o vivido, lembrar cenas recentes e antigas, rememorar os últimos instantes; enfim, é o corpo morto que aglutina e sidera possibilidades para o fio, muitas vezes roto e fino, de dizer do enlutado no laço com os outros que o acompanham nesse momento.
A pandemia faz desaparecer tal possibilidade, já que a privação do encontro com o corpo contaminado se estabeleceu como dominante. Muitos velórios, cremações e enterros só puderam ser acompanhados presencialmente a muitos metros de distância ou foram substituídos pela mediação de equipamentos tecnológicos, em especial as telas digitais. Han acentua essa presença da digitalização da vida privada e afirma que:
é dramático que não sejamos capazes de tocar em outra pessoa (...) não nos tocamos mais, nem contamos histórias entre nós (...) o outro foi reduzido a um transmissor do vírus”. Isso marca o modo como pacientes, em diferentes momentos da sua internação hospitalar e de seus momentos finais de vida, agarraram-se a celulares, notebooks e plataformas digitais na esperança de um contato, mínimo que fosse, com um familiar ou ente amado. O outro amado, então enfermo, foi transformado em imagem digitalizada sem a permissão do encontro de corpos com tudo o que isso emoldura de presença como o timbre da voz, a temperatura do toque, o cheiro da pele ou hálito, o contato da presença física enfim. Estamos mais sós que nunca ou ficamos reduzidos a nós mesmos, encerra o autor.
Eis que Nancy interroga:
a lupa viral amplia as características de nossas contradições e de nossas limitações (...) Somos humanos, sem penas e dotados de linguagem, mas certamente não super-humanos nem transhumanos (...) Demasiado humanos?.
Essa dose a mais de solidão, imposta pelo coronavírus, criou o imperativo de corpos extremamente isolados, um novo cenário para duas enfermeiras de uma UTI no interior de São Paulo, que criaram as denominadas mãozinhas do amor, estabelecendo um modo de acolher pacientes entubados (Sousa, Cavalcanti, Ribeiro3). Usando luvas plásticas cheias de água morna presas a mãos dos doentes, que simulavam a temperatura do corpo humano, elas escreveram dizeres delas, de familiares e de outros lugares na tentativa de vivificar o que o vírus reduziu à condição de pura carne privada do simbólico. Birman4 aponta que a pandemia colocou em questão uma problemática eminentemente orgânica embora seus efeitos traumáticos tenham ultrapassado em muito o campo estrito do discurso biológico. O corpo – potencialmente infectado, contagiante e misteriosamente adoecido pelo quê não se sabia tratar – passou a ser visto como ameaça e como pauta de controle. As proteções sanitárias dão notícias de tal impedimento do contato entre os sujeitos:
o isolamento social, a distância física entre os corpos, a impossibilidade de tocar o outro, a circulação em ambientes fechados, a lavagem das mãos, o evitamento de aglomerações e o uso permanente de máscaras de proteção.
(Birman5)
Tudo isso cria as bases do que Kehl6 chamou de luto inconcluso:
Como talvez seja infindável o luto das pessoas que viram um familiar ou um amigo ser levado ao hospital e depois... depois nada. A falta do corpo para a cerimônia de despedida aponta para o impossível de (não) acreditar que/como a morte realmente aconteceu, se aquele ser enterrado era realmente o ente querido, além de aguçar os modos imaginários de supor como foram a dor da doença, o tratamento e os momentos finais, e como se deu de fato a morte; no limite acende a ilusória possibilidade de que um engano tenha sido cometido e que o ente amado possa retornar a qualquer momento na porta da sala ou no portão de casa. Sem o corpo do morto, o sofrimento se estende, agiganta e parece não se encerrar.
Sendo o corpo o epicentro do luto, vale passear pela exposição de Rosana Palazyan, denominada Aqui é mais do que o vírus, realizada em 2020, no Instituto Itaú Cultural em São Paulo. Ela confeccionou máscaras de tecido em pequeno tamanho e produziu bordados com os seus próprios fios de cabelo sobre esses objetos, dispondo ali um outro trato ao corpo.
Tais máscaras em conjunto materializam formas de presentificar o corpo ausente, quais sejam, i. cabem na palma da mão de um corpo que não as segura, ii. são presas a um rosto que não está manifesto no painel, iii. foram bordadas por mãos que não se vêem no trabalho da tecelagem e iiii. letras, palavras e escritos foram bordados com um fio de cabelo humano de cuja cabeça não se sabe de onde caíram. Apenas o corpo de palavra fica latejando para os olhos dos sujeitos que se dedicam a apreciar tais rastros de ausências.
Proteger você de mim, reexistir, respira-dor, descartável são formulações que remetem ao estado global em que a pandemia colocou o humano, marcado pelo isolamento e falta de convívio social que modificou todas as fronteiras da vida no planeta de forma comum. No entanto, há um conjunto de enunciados que dizem respeito especificamente ao que se produziu no Brasil com a gestão do genocida, covarde, psicopata, fascista Jair Bolsonaro. Os indicativos do aumento da miséria, descaso com a saúde pública, negação da vacina e do isolamento, a brutalidade no trato com os índices de mortos, as falcatruas no superfaturamento de itens hospitalares e a absoluta indiferença aos mortos são discursivizados nas máscaras fome-agora, aqui é genocídio sim, psicopata fascista, ladrões de ar, esperançaequilibristança, genocida nunca mais. Nesses termos, ausenta-se, muito e mais ainda, o corpo simbólico de um presidente que deveria cuidar e proteger os habitantes do país que governa, empreender políticas sanitárias e públicas para vacinação e acolhimento da dor de seu povo. Por isso, aqui foi bem mais do que vírus.
O luto sem corpo é como o painel produzido pela artista, mapa de ausências, ao mesmo tempo em que elas presentificam um sujeito cujas palavras permanecem nos tecidos bordados a edificar efeitos de recusa do horror. Tal painel produz, no avesso do inominável, um modo de situar efeitos de presença e proteção. A perda de cabelos manifesta o padecimento de um sujeito que, mais do que se colocar somente como um corpo, escolheu recolher os seus restos e fazer deles um fio de bordar, uma obra de dizer inclusive para e pelos milhares que morreram sem ar e sem voz.
Notas
1 Saavedra, Carola. O Inventário das Coisas Ausentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
2 Freud, S. [1915-1917]. Luto e melancolia. São Paulo, Cosac Naify, 2011.
3 Abrahão e Sousa, L. M.; Cavalcante, A.; Ribeiro, T. M. O real e a metáfora: “mãozinhas” em discurso. Revista Investigações, Recife, v. 34, n. 2, p. 1 - 22, 2021.
4 Birman, J. O trauma na pandemia do coronavírus – suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p.55, 2021.
5 Birman, J. O trauma na pandemia do coronavírus – suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 96, 2021.
6 Kehl, M. R. Melancolia e criação. In: Freud, S. Luto e melancolia. São Paulo, Cosac Naify, 2011.