Índia demais para ser negra e negra demais para ser branca, é assim que eu me vejo nessa narrativa atual, mas de incômodos longevos, sobre raça e suas origens. Qual lugar que realmente ocupo e qual é a consequência desse lugar nas minhas escolhas?
Nascida de pai indígena da região de Cariacica no Espírito Santo e mãe negra, nordestina, da Paraíba, com antecedentes brancos. Sou a quinta filha temporã de uma família absolutamente feminina e mestiça. Meu lugar por esse e outros motivos sempre foi o de não pertencimento.
Meu pai morreu quando eu tinha 12 anos, e dele só me lembro dos cabelos muito lisos, pele amarela, da distância afetiva que nos rondava, do jogo de damas que me ensinou dignamente, da caneca com gomos de cana cortados ao meu prazer, e de uma morte bem rápida, após anos de desconhecimento do câncer de pele. Trazia uma maciez na fala, calmaria e delicadeza no andar e falar típicos dos índios. Possuía um encantamento e sedução já pouco evidenciados aos seus 50 anos. Era elegante, gostava de comidas finas regada a muita pimenta de quem herdei o gosto e prazer pelo sabor. Ele bebia! Bebia muito e essa era a pior parte. Era manso, suave e habilidoso.
Dele também herdei um certo xamanismo e afeição aos caldeirões, uma intuição e silêncio próprios de quem tem um conhecimento inscrito. Eu como boa geminiana quebro esse silêncio o tempo todo.
Minha mãe era uma mulher pequena, de pés miúdos e finos. Tinha um envelhecimento natural que conheci ainda criança. Seus cabelos trançados à moda antiga, já eram brancos quando eu a reconheci como mãe. Sua altivez era imensa. Sua força natural vinha de quem perdera sua mãe muito cedo, migrou de sua terra natal por mares distantes. Tinha uma memória afetiva de uma avó materna, um pai que enriqueceu como alfaiate, mas decidiu dividir as benesses com uma segunda esposa branca e viúva, deixando para minha mãe, e seus 4 irmãos o lugar das sobras. Talvez isso tenha lhe trazido um desconsolo e dureza, com a qual nos criou. Nunca fomos boas ou o suficiente bonitas aos seus olhos, e creio que essa foi a projeção que ela fez para suas 5 filhas. Entretanto deixou-nos o capricho pela culinária, a mistura do doce com salgado e o tempero impecável impregnados de sua ancestralidade africana.
Minha mãe transformou o servir pelo receber e os bons costumes a mesa, além de uma dedicação total a família. Certamente uma deiscência de rainhas africanas. Nunca me debrucei a procurar a origem indígena ou africana de minha família, falta-me propriedade e argumento para debates acalorados sobre o lugar de fala ou apropriação de raça, se Puris ou Iorubas, de certo foram valentes o suficientes para suportarem todo tipo de submissão, cisão e rejeição. Diferenciados no trabalho e princípios, deixaram-nos força e sensibilidade suficientes para atravessar rios e oceanos de embaraço racial.
Deste cenário nasci tarde para acompanhar as minhas irmãs e cedo demais para tudo que decidi viver. Mesmo sem tocarmos abertamente sobre raça e o que tudo aquilo representava em nossas vidas, fomos aprendendo aos poucos de onde viemos e qual o nosso DNA.
Entendo que essa mistura da pele negra, cabelos anelados, olhar profundo e curioso pela vida, sensibilidade aflorada e lógica da sobrevivência é a mistura perfeita dessas duas raças. Me orgulha e engrandece ver em mim detalhes de cada elemento que me faz única, diferenciada e forte. Suficientemente aparelhada pelos meus ancestrais para as batalhas que a vida me impõe.
Se cada um de nós soubesse tirar proveito desses códigos raciais como elementos de força, teríamos para além da retórica, a ação diante das adversidades. Trocaríamos o medo que nos atravessa pela coragem que adentra em qualquer ambiente.
Nos vemos já, já!