Os factos são estes: no dia 6 de outubro de 1980, quatro homens bem armados assaltaram um banco situado na Malveira (norte de Lisboa). Um assalto bem planejado, executado com frieza e eficiência. Os ladrões entraram na dependência, armas em riste, “mãos ao alto, passem para cá o dinheiro”, podemos imaginar o cenário. Funcionários do banco assustados, o medo instalado nos clientes, os assaltantes a recolherem o dinheiro das caixas. Mas, de repente, tudo corre mal.
Um homem de 33 anos (chamemos-lhe de Cidadão 1), que estava acompanhado do seu filho de sete anos, decide tentar deter um dos assaltantes. Um outro, sem hesitar, dá-lhe um tiro na cabeça, e o Cidadão 1 cai morto aos pés do seu filho, que está em choque. Nesse momento, o alarme começa a soar e as cortinas de ferro de emergência começam a descer, protegendo os funcionários do banco.
Outro dos ladrões atira uma granada como retaliação. Percebendo que o assalto tinha falhado, o grupo decide fugir dali deixando o dinheiro para trás. Ao sair para a rua, um popular (chamemos-lhe de Cidadão 2), que estava à espera deles alertado pelo barulho, atinge um dos assaltantes com um tiro de caçadeira. O ladrão cai e é imediatamente atacado, a pontapés, pedradas e pauladas, por outros populares que se foram aproximando. Os assaltantes tentam reagir, disparam tiros, mas a população está furiosa e cega, e não se deixa intimidar.
Os três assaltantes que restaram decidem procurar um carro para roubar e apressar a fuga. No entanto, o que ficou ferido na explosão dentro do banco cai e também é apanhado pelos populares, que o atacam com ferocidade. Os assaltantes que sobram conseguem finalmente roubar uma carrinha e fugir dali. Ficam dois para trás, que acabaram por ser linchados pela população. Consta do registo que um dos corpos tinha “vestígios de sevícias”, o que permite avaliar o grau de violência que foi exercida sobre eles.
Estes são os factos. Convém contextualizá-los sumariamente: os assaltantes pertenciam às Forças Populares 25 de Abril (FP25), uma organização terrorista de extrema esquerda. Apesar da democracia portuguesa estar, na altura, já sob uma constituição referendada, o que significa a consagração de um estado de direito moderno, o grupo insistia que o País deveria seguir a via do socialismo, nem que fosse à força de bombas e assassinatos. Assaltavam bancos para angariar fundos para essa revolução armada.
O fenómeno não era isolado, uma vez que no restante da Europa havia outras organizações terroristas parecidas, cada uma com as suas nuances teórico-práticas (o Baader-Meinhof, na Alemanha; o IRA, no Reino Unido; a ETA, na Espanha, etc). Durante cerca de seis anos, as FP25 levaram a cabo vários assaltos e atentados, provocando 18 mortes no total.
Apresentados os factos, vamos ao que interessa. E, para mim, o que interessa, o que me deixou perplexo, o que me abalou o espírito, não foi a fúria da população que linchou dois dos assaltantes. Esta agiu em histeria, movida por raiva, com os sentidos bêbedos de vingança e ódio. Algo sempre terrível e reprovável. Mas o que me impressiona, até hoje, foi não conseguir perceber o que raio passou pela cabeça do Cidadão 1, quando largou a mão do filho de sete anos e decidiu enfrentar um assaltante armado, sem qualquer preparação, sem qualquer necessidade, sem qualquer cuidado.
Este homem agarrou um assaltante e recebeu um tiro na cabeça. Morreu instantaneamente, ali, num chão que não lhe pertencia, por uma causa que ele podia simplesmente ignorar. O banco não era dele, o dinheiro não era dele, não havia nenhuma vida em perigo iminente que ele devesse defender. Em vez de se encolher a um canto, abraçar o seu filho e esperar que o mal passasse, foi à luta contra um mal poderoso e implacável, um bando de assassinos expeditos e treinados. Por nada, por impulso, por… não sei o porquê. Perdeu a sua vida e amputou a vida do filho num dia de outubro anônimo, por causa nenhuma.
E que raio se passou pela cabeça do Cidadão 2, que decidiu enfrentar os assaltantes que saíam a correr do banco com a sua caçadeira? Enfrentar com tiro de chumbo as rajadas de metralhadoras e pistolas automáticas? Um homem sozinho contra uma desconhecida força de terroristas. Arriscou a vida, assumiu uma responsabilidade que não era dele e podia, num ápice, arruinar a sua vida e a dos seus. Demonstrou a mesma leviandade, a mesma irracionalidade do Cidadão 1, só teve mais sorte. Ainda assim, cinco meses depois, a FP25 tentou matá-lo a tiro enquanto trabalhava na sua loja, por vingança. Mais uma vez, por sorte, conseguiu fugir. Ferido na mão, perdeu um dos dedos.
Por quê? Heroísmo? Serão estes os “heróis do mar” que o nosso hino nacional canta? Será esta a espécie de português que nos fez nação? Foi este tipo de comportamento que permitiu levar a língua portuguesa a todos os cantos do mundo?
Um dia presenciei uma zaragata entre um desconhecido e um vizinho meu (só o conhecia de vista). Estava a acontecer a uns cinco metros de mim, e achei que devia intervir pois a integridade física do meu vizinho estava em perigo e eu tinha destreza e força muscular que lhe podiam ser úteis. Mas, de repente, o desconhecido tirou do bolso uma pistola, apontou-a ao meu vizinho e ameaçou disparar. Gelei imediatamente, fiquei paralisado. Percebi que, no instante seguinte, se tentasse ajudar um vizinho, podia apanhar um tiro, morrer, perder tudo, desaparecer deste mundo.
Não me lembro do dia exato em que isto aconteceu, podia muito bem ser 6 de outubro. Uma granada de ácido rebentou dentro do meu estômago, um sabor azedo inundou-me a boca e quis vomitar. Era medo. Verdadeiro medo de me transformar, num estalar de pólvora, em mísera nota de rodapé de jornal e ir parar às estatísticas como dano colateral. O meu vizinho recuou sem parar de insultar o desconhecido. Este, percebendo que estava a chamar as atenções, decidiu meter-se no carro e ir embora. Eu também fugi dali, o meu vizinho nem se apercebeu que eu estava por perto.
Repito, não consigo perceber o que raio passou na cabeça daqueles Cidadão 1 e Cidadão 2. Mas, se calhar, é por isso que ainda estou vivo. Sem grande mérito, concedo.