Se, no texto anterior, fizemos um travelling sobre o panorama bibliográfico da estupidez, creio que valeria a pena fazer, agora, alguns zooms.

Alguuns zooms, pois.

Em moldura internacional (ainda)

É a estupidez, idiota!

Ezzio Flavio Bazzo, no incipit do seu Manifesto Aberto à Estupidez Humana (1979), afirma que a “Estupidez é uma enfermidade do carácter e portanto… algo passível de mudanças e até mesmo de cura” e começa a obra sob o signo dadaísta de Tristan Tzara (“Um manifesto é uma comunicação feita ao mundo inteiro, na qual não existe outra pretensão a não ser a de descobrir o meio de curar a sífilis política, astronômica, artística, parlamentar, agronômica e literária. Pode ser doce, bonachão ou agressivo, tanto faz. O certo é que tem sempre razão, que é sempre vigoroso, forte e lógico...”).

Robert Anton Wilson discreteia sobre a estupidez, afirmando que esta “não é traço exclusivo do estúpido”, não exigindo 'vocação' e “parece[endo] ser uma perturbação sócio-semântica que nos afeta vez por outra”, e considerando que a sua abolição é um

“objetivo /…/ racional, prático e desejável - portanto ele é naturalmente denunciado como utópico, fantástico e absurdo.”

(A Abolição da Estupidez, 1980).

Opinião partilhada por Paul Tabori que defende não ter ela fim (Historia de la estupidez humana, 1999).

Carlo M. Cipolla enuncia As leis fundamentais da estupidez humana — incluídas no seu Allegro ma non troppo, de 1988, que contempla, também, o ensaio satírico Il ruolo delle spezie (e del pepe in particolare) nello sviluppo economico del Medioevo —, explicando as desventuras humanas como “o resultado do modo extremamente improvável – e ouso dizer estúpido – pelo qual a vida foi organizada desde os seus inícios” e da acção de um grupo maioritário e sem organização, o mais influente na humanidade: os estúpidos. E as 5 Leis e suas alíneas são:

1.“Sempre e inevitavelmente cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação.”

2.“A probabilidade de uma certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica desta mesma pessoa.”

3.[lei de ouro]”Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa um dano a uma outra pessoa ou grupo de pessoas, sem, ao mesmo tempo, obter qualquer vantagem para si ou até mesmo sofrendo uma perda.

  • “A única importante exceção à regra [da acção humana naturalmente incoerente] é representada pelas pessoas estúpidas, que normalmente mostram uma máxima propensão a uma plena coerência em todos os campos de atividade.”

  • “O potencial de uma pessoa estúpida criar danos depende de dois fatores principais. Antes de tudo, depende do fator genético. /…/ O segundo fator que determina o potencial de uma pessoa estúpida deriva da posição de poder e de autoridade que ela ocupa na sociedade. [Entre burocratas, generais, políticos, chefes de estado e homens da igreja, encontra-se a áurea proporção s de indivíduos fundamentalmente estúpidos, cuja capacidade de prejudicar o próximo foi (ou é) perigosamente acrescida pela posição de poder que ocuparam (ou ocupam).]”

4.“As pessoas não estúpidas subestimam sempre o potencial nocivo das pessoas estúpidas. Em particular, os não estúpidos esquecem constantemente que, em qualquer momento e lugar, e em qualquer circunstância, tratar e/ou associar-se a indivíduos estúpidos demonstra-se infalivelmente um custosíssimo erro.”

  • “Essencialmente, os estúpidos são perigosos e funestos porque as pessoas sensatas acham difícil imaginar e entender um comportamento estúpido.”

  • “O fato de que a atividade e os movimentos de uma criatura estúpida são absolutamente erráticos e irracionais não apenas torna a defesa problemática, mas torna também extremamente difícil qualquer contra-ataque – é como tentar disparar em um objeto capaz dos mais improváveis e inimagináveis movimentos.”

  • “A pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigoso que existe”.

Pelo meio, ficam propostas de equações, diagramas e gráficos que supostamente poderiam ‘racionalizar’ o irracionalizável e a quantificar o inquantificável…

Giancarlo Livraghi (El Poder de la Estupidez e La Estupidez del Poder, 1996) acrescenta às leis 3 corolários:

  • “En cada uno de nosotros hay un factor de estupidez, el cual siempre es más grande de lo que suponemos.”

  • “Cuando la estupidez de una persona se combina con la estupidez de otras, el impacto crece de manera geométrica - es decir, por multiplicación, no adición, de los factores individuales de estupidez.”

  • “La combinación de la inteligencia en diferentes personas tiene menos impacto que la combinación de la estupidez, porque (Cuarta Ley de Cipolla) "la gente no estúpida tiende siempre a subestimar el poder de daño que tiene la gente estúpida".’

Confessadamente fascinado pela estupidez, Giancarlo Livraghi evoca uma leitura marcante: Una Breve Introducción a la Historia de la Estupidez Humana (1934), de Walter B. Pitkin que, após c. 300 pp., encerra com um “Epílogo: ahora estamos listos para empezar a estudiar la Historia de la Estupidez”… vazio. E termina com uma remissão para uma página da net onde se multiplicam as reflexões em divertissement, desde a utilidade da estupidez até ao síndroma de Alice no País das Maravilhas…

Luís Pascoal glosa Carlo Cipolla e Giancarlo Livraghi no seu A Estupidez Humana, comentando-lhes os ‘axiomas’.

Mais recentemente, Guillermo Schmidhuber de la Mora, no seu Elogio de la estupidez (Ensayo fabulado), 2009, enumera várias formas de estultícia (a de sinrazón, do ilógico, da ignorancia, do olvido, da incomunicación, do ocio, a regional, a do ramplón, a da violencia) segundo um fabulário animal de depoimentos epistolares (carta/cuentos de: Los Póngidos inferiores, Asno filarmónico, Elefanta memoriosa, señor Perico y la señora Guacamaya, Hormigas arrieras, Yegua feminista, Serpiente bíblica, Gata entrada a profeta) compondo um itinerário em 8 momentos convergindo para o Edicto de la Asamblea de los Animales): são a glosa “De cómo los animales enviaron nueve cartas a los humanos para que comprendieran los desbarres que habían perpetrado en contra de la Madre Naturaleza que todos compartimos”. Tudo termina de modo que o PAN ou um seu homólogo não desdenharia subscrever:

“Dado el mal manejo que la humanidad ha tenido del Reino Natural en el periodo en que actuaron como reyes de la creación, la Asamblea de los Animales ha tomado la decisión de derrocarlos y de suspender su participación en el pleno de la Asamblea.”

Às vezes, encontramos, segundo a lei bibliográfica da ‘boa vizinhança’, diversos textos fraternizados sob esse título (p.e., “Estupidez”, na Yumpu), dentre os quais os de César Scorza, assinalando a fortíssima presença da estupidez numa altura em que “se proclama la existencia de una sociedad del conocimiento, que se aplauden los adelantos científicos, tecnológicos, se presume de disfrutar progresos sociales y filosóficos, se habla de la era del acceso a la información y que somos la generación intelectualmente más desarrollada y preparada que nunca en la historia” e destacando 6 Puertas de la Estupidez (torpeza, malicie, fórmulas, emoções, túnel do tempo e falácias).

Não resisto à tentação de evocar algumas célebres quotes:

Nothing in all the world is more dangerous than sincere ignorance and conscientious stupidity (Martin Luther King, Jr.)

If Stupidity got us into this mess, then why can't it get us out? (Will Rogers)

In politics stupidity is not a handicap. (Napoleão Bonaparte)

Stubborn and ardent clinging to one's opinion is the best proof of stupidity (Michel de Montaigne)

Stupidity is a talent for misconception (Edgar Allan Poe)

The doctor sees all the weakness of mankind; the lawyer all the wickedness, the theologian all the stupidity. (Arthur Schopenhauer)

To be stupid, selfish, and have good health are three requirements for happiness, though if stupidity is lacking, all is lost. (Gustave Flaubert)

Stupidity is something unshakable; nothing attacks it without breaking itself against it; it is of the nature of granite, hard and resistant (Gustave Flaubert)

Stupidity has a knack of getting its way (Albert Camus)

Um pedante é um estúpido adulterado pelo estudo (Miguel Unamuno)

Amigo, perceberás que no mundo existem muito mais tolos do que homens, e lembra-te disso (François Rabelais)

Contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão (Friedrich Schiller)

Deus criou, provavelmente, os imbecis para os inteligentes lamentarem menos a vida (Alexandre Dumas, filho)

Um mundo a que não faltam as fake quotes ( The difference between stupidity and genius is that genius has its limits, atribuída a Einstein) nem o verbo papal: Stupidity is also a gift of God, but one mustn't misuse it (Papa João Paulo II).

Navegar pela imprensa online, faz-nos encontrar teses afins sobre o império da estupidez na realidade, como é o caso da revista Ver.pt do Jornal de Negócios, onde Helena Oliveira, n’“O paradoxo da estupidez na economia do conhecimento” (16/11/2017), afirma:

“Conhecimento, aprendizagem, talento, pensamento crítico, inovação, criatividade: todas estas palavras são mais do que comuns na literatura obrigatória das escolas de negócios, nos relatórios publicados pelas consultoras e nos discursos proferidos por políticos de todo o mundo. Mas a triste realidade parece apontar exactamente para o seu oposto: as organizações da actualidade prezam a obediência, a ingenuidade, o conformismo, níveis reduzidos de pensamento crítico e de reflexão, sendo igualmente adversas ao pensamento independente. Porque é mais fácil manter o status quo e porque pensar dá muito trabalho.” E a Université Libre de Bruxelles – ULB dedicou-lhe um seminário no primeiro dia da 10th Conference of the Parties of the Convention on Biological Diversity in Nagoya (Japan): “L’Âge de la Stupidité/The Age of Stupid” (18/Outubro/2010), a partir de filme com o mesmo título. Wendy Northcutt ocupa-se dos seus galardões (The Darwin Awards. Evolution in action, 2002) e Scott Adams procura antecipar-lhe o futuro (O futuro segundo Dilbert: o progresso da estupidez no século XXI, 1957).

Das Leis afins

Ao fundo, vibrando de humor, eis as inesgotáveis Leis de Murphy (às vezes, seleccionadas), sob o signo da mais famosa (“Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível”), divulgadas a partir do teste de tolerância à gravidade por seres humanos, concebido pelo engenheiro aeroespacial norte-americano Edward A. Murphy de que assumiu o nome. A algumas é reconhecida a fundamentação científica, radicando-as na memória seletiva e numa certa tendência geral para a negatividade, Vale a pena recordar os outros 9 princípios do primeiro decálogo:

  • Um atalho é sempre a distância mais longa entre dois pontos.
  • Nada é tão fácil quanto parece, nem tão difícil quanto a explicação do manual.
  • Tudo leva mais tempo do que todo o tempo que você tem disponível.
  • Se há possibilidade de várias coisas correrem mal, todas correrão - ou a que causar mais prejuízo.
  • Se você perceber que uma coisa pode dar errada de 4 maneiras e conseguir evitá-las, uma quinta surgirá do nada.
  • Seja qual for o resultado, haverá sempre alguém para: a) interpretá-lo mal. b) falsificá-lo. c) dizer que já o tinha previsto no seu último relatório.
  • Quando um trabalho é mal feito, qualquer tentativa de o melhorar só piora. 9. Acontecimentos infelizes ocorrem sempre em série.
  • Quando se menciona alguma coisa: se é boa, acaba; se é má, acontece.

Muitas leis derivaram das de Murphy. A lei de Finagle de Negativos Dinâmicos: “Qualquer coisa que possa dar errado dará e no pior momento possível.” A ‘Navalha de Hanlon’ (“Nunca atribua à malícia/maldade o que pode ser adequadamente explicado pela estupidez.”), atribuída a Robert J. Hanlon, inspira-se na ‘Navalha de Occam’ (princípio lógico da simplicidade) ou numa frase ficcional de Logic of Empire (1941), de Robert A. Heinlein, cuja autoria o teria reconduzido à designação de Navalha de Heinlein. Lei de Sturgeon (“90% de qualquer coisa é lixo”). A lei de Parkinson (“O trabalho expande-se de modo a preencher o tempo disponível para a sua realização.”), que explica a burocracia, ou o ‘Princípio de Peter’, sobre a incompetência e a administração pública (“Num sistema hierárquico, todo funcionário tende a ser promovido até ao seu nível de incompetência.”). Normalmente , a cada uma corresponde a sua bibliografia…

Continuar nesta senda conduz-nos a uma concepção de Las Culturas Fracasadas. El Talento Y La Estupidez De Las Sociedades (2010), de José António Marina, ou à noção do mundo às avessas, tema d’O Elogio da Loucura (1509), de Erasmo de Rotterdão, d’A Nau dos Loucos (1490-1500), de Hieronymus Bosch (1450-1516), e d’A nave dos tolos (Stultifera Navis ou Narrenschiff, 1494), de Sebastian Brant, que apresenta um desfile de diferentes categorias das fraquezas humanas, criticando-as no âmbito da Igreja.

Se olharmos em volta, eis-nos, não sobre uma tartaruga que se mexe (velha teoria da terra), mas sobre uma ‘jangada de pedra’ (Saramago) de estupidez ladeada por outra(s) e noutras encaixadas… a realidade mutuamente imbrincada por factos surpreendentes, por motivos absurdos, por… estupidez?!