Assim como o estômago e as vísceras são uma extensão do nosso cérebro e sistema nervoso, também o planeta se encontra repleto de organismos que metabolizam os seus ecossistemas. Mantos de fungos cobrem o subsolo íntimo das florestas com micélio, interligando árvores e outros seres num amplo sistema digestivo que chega a atingir a extensão de 970 hectares por um só corpo — nas montanhas de Oregon, por exemplo — ao mesmo tempo que descobrimos fósseis de fungos gigantes com 420 milhões de anos – os prototaxites – que povoavam as paisagens terrestres já desde a era paleozoica. Neste momento estudamos a inteligência celular do slime mold (bolor limoso), uma curiosa matéria que toma decisões espaciais adaptativas às suas condições de sobrevivência desenvolvendo percursos inteligentes, o que poderá interferir no desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial.
Estes universos fúngicos fermentam o nosso imaginário, ampliando o nosso entendimento de corpo para além da sua fronteira liminar. Ao mesmo tempo relembram-nos de como todos os ecossistemas estão inter-relacionados de forma simbiopoiética, sob uma condição de co-desenvolvimento mútuo, onde diferentes espécies se formam em assemblage gerando novas entidades simbióticas. Este re-enquadramento da nossa percepção de seres e mundo destabiliza as nossas concepções ecológicas, revisitando a noção de parasita e hospedeiro, presa e predador, unidade e comunidade. Somos convidados, por exemplo, através do trabalho de Peter Zin a intervir no que nos rodeia de forma consciente seguindo as lições do povo nativo americano Iroquois, que defende na sua Constituição a lei das “Sete Gerações”, a qual estipula que todas as nossas decisões de vida e trabalho deverão ter em conta o benefício da sétima geração vindoura. Mas estes não serão os únicos ensinamentos que uma dérive sensorial e metabólica nos poderá suscitar.
A Tale of Ingestion inaugura no solstício de verão uma exposição encenada que inclui trabalhos que exploram ficções metabólicas e a cosmologia da própria matéria. A convite, são reunidas diferentes gerações de artistas e poetas que navegam entre o psicadelismo, a ecologia, a abstracção e o conceptualismo romântico. A imagem de partida é a deusa egípcia Nut, que se metamorfoseia em forma de vaca e engole o sol, a lua e o cosmos durante a noite, para lhes dar à luz no dia seguinte, digerindo assim todo o universo.
Na primeira sala somos apresentados a uma grande pintura-instalação de Alma Heikkilä (1984, FI) Pollen grains, fungal spores, bacteria, mycelium, cysts, algal filaments and spores, lichens, insects and their parts, plants and animal tissues and several other microorganisms (2017), que se refere a pequenas partículas invisíveis ao olho humano que flutuam no ar e viajam pelos nossos pulmões. Alma Heikkilä desenvolve uma obra que intervém a várias escalas, não apenas pictóricas, desenvolvendo o seu trabalho em abstracção a partir de close ups, mas também através do seu trabalho ecológico na associação finlandesa Mustarinda, que envolve artistas e investigadores em projectos que promovem a revitalização ecológica integrada da sociedade.
Já no andar de baixo, encontramos as esculturas pleurais de David Horvitz (19??, US), fabricadas em vidro soprado contendo A single breath of air (uma única exalação de ar) (2016). Uma versão das mesmas foi produzida por ocasião do festival Volcano Extravaganza, na ilha de Stromboli em 2016, sendo atiradas ao Mediterrâneo numa travessia de barco durante um ritual em noite de lua cheia. Criando um multiverso conceptual, onde novas espécies podem acoplar e desenvolver o seu habitat, estas esculturas de aether escondem-se pelo espaço. É de notar a obsessão do artista em coleccionar cogumelos e nomes de plantas, constituindo a partir do contacto com a natureza no seu quotidiano a matéria vital e o léxico do seu corpo de trabalho.
Lupo Borgonovo (1985, IT) apresenta um conjunto de esculturas, Ornithology I (2015), S (2015). As suas obras, frequentemente elaboradas num exercício de stream of consciousness, testam os limites materiais do visível e desafiam percepções simbólicas. Em S (2015) estamos perante uma série de moldes viscosos com impressões de diferentes tipos de pele animal, onde podemos projectar animais ou as nossas próprias entranhas. Nestas esculturas, a distinção entre o exterior e interior do molde é difusa, apelando à a imaginação do visitante a navegação do próprio interstício.
Na mesa podemos encontrar uma escultura em bronze e mármore de Carlos Monléon (1983, ES), um protótipo para um forno de lenha que o artista planeia construir com a forma reconfigurada do sistema digestivo e vísceras. O mesmo faz parte de uma série de esculturas que o artista vem a desenvolver na sequência da sua investigação sobre ingestão, fermentação e universos bacterianos, uma elaboração material a partir das suas reflexões sobre a união entre o sistema digestivo e a cognição distribuída.
Mumtazz (1970, PT) apresenta uma série de desenhos com corpos imaginários e figuras caleidoscópicas. Estes fazem parte de um extenso corpo de obra gráfica raramente mostrado, onde a artista desenvolve o seu léxico pictórico e visual a partir de uma reconfiguração poética do real e das fronteiras simbióticas da matéria em metamorfose. Os seus desenhos, por vezes cinéticos, têm em conta o universo plural e onírico da animação, quer de Paradjanov ou Švankmajer, mas também aludem a viagens arquetípicas pelos escritos e pinturas de Jodorowsky, Jung, ou mesmo Khalo.
Peter Zin (1947, SE) é plantador de árvores, poeta e músico de free jazz. O seu talento plural para a improvisação já passou por pontos tão distantes como o Senegal ou o Canadá. Os seus ensinamentos tomam inspiração na geração de Buckminster Fuller e Stewart Brand, e tem influenciado gerações de activistas e ecologistas pela Península Ibérica fora, introduzindo métodos de permacultura e crítica ecológica que exploram a resiliência da terra e os seus recursos de forma ímpar. Na parede da galeria podemos encontrar uma selecção da sua extensa colecção de bandeiras que será mostrada por completo na 4a edição da Bienal de Design de Istanbul em Setembro de 2018. Na mesa expomos a sua recente edição de poesia Visible Hand, um depurado compêndio de ideias e provocações ecológicas.
Margarida Mendes (1985, PT) é curadora, educadora e activista. Em 2009 fundou o espaço de projectos The Barber Shop em Lisboa, coordenando um programa de seminários e residências dedicado à investigação artística e filosófica. A sua pesquisa - com enfoque no cruzamento da cibernética, filosofia, ecologia e filme experimental - explora as transformações dinâmicas do ambiente e o seu impacto nas estruturas sociais e no campo da produção cultural. Em 2016 integrou na equipa curatorial da 11a Gwangju Biennale, na Coreia do Sul e co-digiriu a temporada piloto de escuelita, uma escola informal no Centro de Arte Dos de Mayo (CA2M), Madrid. Actualmente é co-curadora de uma escola e exposição sobre metabolismo e digestão integrante na 4a Bienal de Design de Istanbul, "A School of Schools” a inaugurar em Setembro.