«Do alto destas pirâmides, 40 séculos vos contemplam».
(Napoleão Bonaparte)
«Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar».(Tradição popular)
«Ó nau Catarineta
Em que andei no mar
Por caminhos de ir,
Nunca de voltar!Veio a tempestade
Perder-se do mundo,
Fez-se o céu infindo,
Fez-se o mar sem fundo
Branquinho da Fonseca.(“O Arquipélago das Sereias”, 1961)
No texto anterior, falei de uma das 3 vias que os especialistas indicam para destruir um país
I. De Portugal a saque... Uma história de pasmar
II. ... a Portugal en chamas: Por caminhos de ir,/ Nunca de voltar
III. Quando a bússola se desmagnetiza: leva muito que contar
Tratada a primeira delas, a das Finanças, vamos à segunda, das Catástrofes “naturais”.
II. ... a Portugal em chamas
«Por caminhos de ir,
Nunca de voltar»
Generalidades & representações
Comecemos com alguns dados:
A. De acordo com algumas fontes, o total de floresta em Portugal é de c. 3 200 000 ha.
B. Fogos & área ardida
- Em 16/8/2017, segundo os dados provisórios do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICN), até 31 de Julho tinham ardido em Portugal mais 485% de área do que a média dos 10 anos anteriores.
No 8.º relatório provisório (1/1-30/9/2017), a base de dados nacional de incêndios florestais regista 14 097 ocorrências (2951 incêndios florestais e 11 146 fogachos) que resultaram em 215 988 ha de área ardida de espaços florestais (entre povoamentos (117 302 ha) e matos (98 686 ha)). Ora, em 1/Set/2017, já a área ardida ultrapassava 223 275 ha. Se somarmos todas as áreas ardidas ao longo destes anos, verificamos que só em 10 anos, tempo de recuperação necessário à reconformação da zona verde, arderam c. 2/3 da área florestal do país. E, num só dia, ardeu metade do que tinha ardido em 9 meses. Figura 1
O panorama de 16/Set-16/Out/2017 é assim assinalado no mapa do Sistema Europeu de Informação sobre Incêndios Florestais (EFFIS , na sigla em inglês) no seu site na Internet (estimativas com base em apenas 80% da área total ardida, dados depois confirmados pelas autoridades nacionais):
- O Público apresenta o cenário nacional assim com base nesses dados aquém da realidade de um país ainda em chamas, que o sistema da Comissão Europeia estimava já em 223 275 hectares:
Destaque-se um caso: 90% do Pinhal de Leiria, com 7 sécs. de existência, estão em cinzas . 7 séculos contemplam-nos com a total desolação.
- Acresce que aumentou exponencialmente para quase metade o número de fogos que deflagram à noite.
C. Os recursos de prevenção dos fogos foram diminuídos nos efectivos e na eficácia.
D. Os fogos de Outubro parecem repetir a catástrofe de Pedrógão Grande(64 mortos e 254 feridos): 41 mortos, 71 feridos e milhares de animais mortos já confirmados em 17/10/2017 nos noticiários. Portugal de negro e de luto.
E. O relatório da CTI sobre Pedrógão afirma que
“O próprio registo da fita do tempo, do qual devem constar todos os acontecimentos que têm lugar nas operações de emergência e de socorro, sofreu interrupções decididas pelo comando” (p. 15);
“A partir do momento em que foi comunicado o alerta do incêndio, não houve a perceção da gravidade potencial do fogo, não se mobilizaram totalmente os meios que estavam disponíveis e os fenómenos meteorológicos extremos acabaram por conduzir o fogo, até às 03h00 do dia 18 de junho, a uma situação perfeitamente incontrolável.” (p. 15);
“Se houvesse um sistema de informação e sensibilização do comando, na altura apropriada, no sentido de sensibilizar a população, no sentido de que fosse retirada, ou dando indicações para se meterem nas casas e não saírem das casas, provavelmente o drama não teria acontecido”.
F. Em plena catástrofe de Pedrógão, num quadro de falta de meios, o governo impediu a colaboração em regime de voluntariado de 60 bombeiros galegos com meios técnicos.
G. Estradas atingidas pelo fogo mantêm-se abertas à circulação e chegam a ser recomendadas, tornando-se cemitérios de carros e de seres carbonizados (v. caso da “estrada da morte” de Pedrógão).
H. As populações queixaram-se da falta de resposta do 112, número de emergência, ou de resposta declarando falta de meios de socorro. Responsáveis governamentais recomendaram-lhes que fossem “proactivos” e se “autoprotegecem” .
I. Circula a informação de avistamentos de viaturas a alta velocidade na estrada a lançar fogo para o mato.
J. Os bombeiros queixam-se de serem impedidos de actuar em função da realidade do terreno devido à centralização do processo de combate aos fogos, de terem um sistema de comunicações (SIRESP) ineficiente, mas, apesar de ilegalidades assinaladas pelo Tribunal de Contas, contratado , de não poderem usar a técnica do contra-fogo, “a medida mais eficaz para quebrar as chamas e até para salvar as casas”.
K. Os relatórios assinalam erros e problemas técnicos e estratégicos e uma florestação desordenada. Os técnicos reclamam “revolução na prevenção e combate aos fogos”. Multiplicam-se as “propostas para Portugal não arder”. Há Planos de Ordenamento do Território, projectos que a televisão deixou mostrar e incentivos para essa reordenação. Há ‘avisos à navegação’, até, de responsáveis pelos serviços de combate aos incêndios. Fala-se de deficiências antes (prevenção), durante (ataque) e depois (assistência às vítimas).
L. Alguns perguntam-se “como é possível tanta incúria, desorganização e incompetência?”
Assinalam-se algumas constatações:
Se o fogo se gerasse espontaneamente ou se expandisse a partir de uma pequena chama, África seria um deserto de cinza. Ora, em África, apesar da extensão e desordenamento florestal, há as queimadas: sempre por acção humana, limitadas e controladas. Houve quem fizesse deliberadamente a experiência em áreas em que ovos fritam na carroçaria de um carro, tão elevada é a temperatura: tentativas multiplicadas sempre com o fogo a extinguir-se…
Se se experimentar deitar um cigarro aceso para o mato seco ou deixar uma fogueira acesa sem cuidado de afastar as ervas secas, em geral, não se desencadeia um incêndio florestal. Ao contrário do que tanto se proclama. Remeto para a alínea anterior.
Quase metade dos fogos tem-se, reconhecidamente, desencadeado à noite e com frentes de extensão óbvia de kms, muitas vezes, com intervalos entre os focos ao longo desses mesmos kms, formando linhas a tracejado ou focos diversos. Seriam eles como a tal bala da anedota do caçador que andava à procura das rolas aos ziguezagues, abatendo umas atrás das outras...?
Considerando as premissas anteriores, trata-se de uma esmagadora maioria de fogos postos. Como já se vai reconhecendo publicamente.
Considerando as premissas anteriores, também se tornam despiciendas campanhas massivas de sensibilização da população à hipótese de fogos casuais provocados por cigarros ou fósforos mal apagados… alertas, sim, mas campanhas…
Segundo alguns comentadores, a Galiza avisou Portugal sobre “terrorismo incendiário” que afectaria ambos e as Astúrias.
Contrastivamente, verifica-se uma relutância imensa em reconhecer essa dominante de fogos postos: invoca-se a falta de cuidado de quem ateia um fogo (cigarro, fogueira), fazem-se campanhas de sensibilização, lembra-se o desordenamento florestal, alegam-se descargas eléctricas, fenómenos de ordem diversa… tudo para evitar dizer o que está à vista: fogo posto quase sempre, em 98% dos casos.
Face aos dados, a periódica e sazonal catástrofe “natural” dos incêndios parece ser a nossa indústria mais produtiva, além da burocracia de que falo em crónica anterior:
8.1. aumenta exponencialmente a nossa visibilidade na imprensa estrangeira(https://www.publico.pt/2017/10/16/sociedade/noticia/portugal-volta-a-ser-falado-devido-as-chamas-1789128);
8.2. subimos nos rankings (inter)nacionais: Pedrógão foi o fogo com mais vítimas mortais do país e o 11.º mais mortal no mundo desde 1900
8.3. aumenta exponencialmente a colocação de fogos (1671 em 17/10/2017, mais do dobro da média dos últimos 8 anos, segundo o EFFIS, por vezes, com quase 90% da criminalidade da área), com autênticos records (400 num dia) e a área ardida do país e diminui na mesma proporção a capacidade de os combater e de recomposição das zonas verdes. Começa a ser encarado como “terrorismo” pelos técnicos e como “guerra” por todos;
8.4. aumenta exponencialmente o efeito da acção de colocação de fogos:
8.4.1. P. ex., em 2016, 1 só incendiário com 1 fogo ateado causou c. 1 000 000 de EUR de prejuízos, ocupou 3 dias, 123 bombeiros, 26 viaturas e 520 ha de floresta e mato. Ora, se as muitas dezenas de suspeitos corresponderem a efectivos incendiários…
8.4.2. Só em 15/Outubro, arderam 54 000 ha, 5000 bombeiros no terreno, corte de estradas e de linhas de comboio, evacuação de povoações inteiras, 30 ou 41 pessoas mortas (das quais, 20 bombeiros), 63 feridas… Ministério Público abre inquérito, decretam-se 3 dias de luto nacional, exigem-se “consequências políticas” e “pedido de desculpas” do Governo ao povo…
8.4.3. A “avaliação de danos vai levar semanas”…
8.5. aumenta, na razão directa da anterior, a acção de ataque aos fogos e de responsabilização mútua de todas as instâncias;
8.6. também na mesma proporção directa, aumentam as perdas, em vidas e em valores (de c. 22 400 000 EUR, em 2008, para a média de c. 170 300 000 EUR, em 2014 e 15);
8.7. fazem-se sucessivos estudos (inclusivamente dos 4 perfis-tipo de incendiários e da aplicação da pena mais adequada), formam-se comissões ad hoc, surgem propostas, dá-se matéria à comunicação social (rostos, ideias, mesas redondas, noticiários), elaboram-se mapas interactivos sintetizando a informação sobre os fogos e os danos;
8.8. apela-se à ajuda das vítimas, com consequentes serviços mediadores (de recolha, levantamento dos problemas, distribuição, etc.) e, até, com a denúncia de que esses apoios não chegam ou chegam parcial e tardiamente;
8.9. obtém-se financiamento para “catástrofe natural” (Pedrógão Grande) no âmbito do Programa de Desenvolvimento Rural 2020: 10 000 000 EUR;
8.10. elaboram-se programas de apoio às vítimas e cronologias multimédia do processo, criam-se associações de apoio, contas bancárias para donativos, linhas solidárias e de informação sobre as vítimas, equipas… e pontos da situação sobre a gestão desses fundos de apoio em gráficos interactivos.
8.11. legisla-se em Outubro sobre o apoio às vítimas da catástrofe de Junho/2017
8.12. repensa-se e redimensiona-se o sistema de ataque aos fogos (recursos humanos e técnicos), ou estuda-se e projecta-se fazê-lo.
- Como resultado disto, observa-se:
9.1. nas áreas afectadas, a progressiva miserabilização do Portugal interior, a ceifa de vidas humanas e animais, com destruição de famílias, edifícios (às vezes, aldeias) reduzidos a vestígios, viaturas carbonizadas, a ruína do tecido empresarial de base familiar, a fuga para os centros urbanos e o despovoamento das zonas rurais onde o dantesco cedeu ao espectral;
… sinto-me como se o meu pai fosse o António Costa e o Marcelo o meu avô e que ambos me abandonaram... sinto-me com medo e não confio neles...
… é preciso é agarrar incendiários e metê-los dentro do fogo, assim talvez faça pensar duas vezes os futuros incendiários, e parar com esse Circo que todos os anos é o mesmo em Portugal.
9.2. no que toca aos outros (sejam eles quais forem), a possibilidade de aquisição a baixo custo das madeiras queimadas e dos terrenos ardidos (“autêntico crime organizado”, expressão usada no comentário António Vitorino — Santana Lopes de17/10/2017, na SIC Notícias), de venda de materiais e serviços para reconstrução dos que teimarem em ficar, etc.
Formulam-se perguntas, sugestões e leituras:
A literatura policial habituou-nos a uma questão para resolver os casos enigmáticos: “a quem aproveita o crime”, “quem lucra com ele”? Certeira e eficaz, de acordo com as leis da simplicidade.
Alguns, como o economista Mattos Chaves, desdobram esta pergunta em 10 outras, concluindo com mais 2 . Outros, sugerem que se comparem as áreas consideradas rurais e de construção urbana e a propriedade de ambas antes e depois dos fogos e se tirem ilações.
Outros, como António Vitorino (na SIC Notícias, em 17/10/2017), lembram que se deve controlar/seguir a circulação das madeiras queimadas (através de registo que chegou a fazer-se)…
Outros, ainda, como Clemente Pedro Nunes, declaram “crime organizado de referido como “verdadeiro crime organizado de destruição massiva”, “terrorismo organizado” .
Responsáveis governamentais declaram “É a vontade de fazer arder que continua a imperar e a criar esta instabilidade no País e nas pessoas” (Jorge Gomes)
Outros falam em crime contra a humanidade, barbárie…
Outros, ainda…
O Presidente da República é, antes de mais, uma pessoa. Uma pessoa que reterá para sempre na sua memória imagens como as de Pedrógão. […]. Mais de 100 pessoas mortas em menos de quatro meses em fogos em Portugal. Por muito que a frieza destes tempos cheios de números e chavões políticos, económicos e financeiros nos convidem a minimizar ou banalizar, estes mais de 100 mortos não mais sairão do meu pensamento, como um peso enorme na minha consciência, tal como no meu mandato presidencial. Marcelo Rebelo de Sousa
Concluamos…
... como recomendam as leis do pensamento que a Lógica regula após este itinerário de informações, constatações consequentes, representações e perguntas. A cada um o seu juízo.
E tenhamos em conta que só muitos meses após o caso de Pedrógão (em Junho/2017), o Governo aceita divulgar parcialmente o VI capítulo do Relatório encomendado a Francisco Xavier Viegas e a 13 técnicos da Universidade de Coimbra, apenas 3 subcapítulos que referem 2 sobreviventes e actos heroicos, sendo certo que as famílias das vítimas terem autorizado a sua divulgação.
Eis-nos reflectidos no primeiro painel do tríptico da Nau Catrineta, de Almada Negreiros, onde a tripulação rodeia uma mesa vazia e espera o sacrifício de um (“qual se havia de matar”) designado pelas “sortes” para sobrevivência, horror que fantasmizava a aventura marítima e os seus naufrágios (mais recente, em 1847, a tragédia de Dooner Party continua a ocupar os antropólogos)
A verdade é que…
… Do alto de 2017, 9 séculos contemplam…
«… a Nau Catrineta
Por caminhos de ir,
Nunca de voltar!»« You hold this boy’s future in your hands, committee.
It’s a valuable future. Believe me. Don’t destroy it!
Protect it. Embrace it. It’s gonna make ya proud one
day — I promise you»(Frank Slade, «Scent of a Woman» 1992)
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar.