Realizou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, entre os dias 5 e 8 de Julho, o Congresso Internacional Preserving Transcultural Heritage: Your way or my way?, sobre questões de autenticidade, identidade e formas de actuação na salvaguarda do património arquitectónico construído no encontro de culturas. O congresso, promovido pelo ARTIS - Instituto de História de Arte da FLUL e pelo ICOMOS Portugal, contou com a participação de investigadores de todo o mundo, num debate gerado pelo confronto entre os valores patrimoniais próprios de cada uma das culturas que criou esse património.
Dividido em dezassete sessões temáticas, que iam desde os valores do património e a gestão dos sítios e centros históricos de matriz europeia em África; à preservação do património das minorias indígenas nas Américas e na região do Pacífico; ao turismo e gestão da arquitectura de regimes totalitários na Europa; às influências clássicas no Mediterrâneo e Próximo Oriente; ao papel da Rota da Seda como geradora de encontros culturais; ao «caldo cultural indiano» de religiões e culturas; ao Império Otomano na encruzilhada entre Europa, Ásia e África e a fusão de culturas e patrimónios para preservar; à salvaguarda do património arquitectónico pertencente a minorias étnicas e religiosas inseridas em países com culturas dominantes.
Entre as várias sessões e painéis de indiscutível interesse, destacamos duas apresentações: a de Nasso Chrysochou , professora e investigadora da Frederick University, em Nicósia, sobre os monumentos eclesiásticos rurais de Chipre e as suas transformações ao longo dos séculos; e a de Tomasz Tomaszek , do Departamento de Conservação dos Monumentos da Rzeszow University of Technology, na Polónia, sobre o património arquitectónico de minorias religiosas do país, que se encontra abandonado. Ambas comunicações tinham presente não apenas a marca que diferentes grupos culturais deixam no património arquitectónico mas, sobretudo, a passagem do tempo e a importância do envolvimento das pessoas e das comunidades na sua salvaguarda. Ou seja, mais do que o valor patrimonial dos vários exemplos apresentados, que é inegável, coloca-se ênfase na sua perda de significado na actualidade para as comunidades onde estão localizados.
Focada nos monumentos de matriz religiosa no meio rural de Chipre, desde o estabelecimento do cristianismo na ilha no século IV, a comunicação de Nasso Chrysochou problematiza a sua transformação e apropriação que as subsequentes religiões oficiais foram fazendo desse riquíssimo património, transformado em híbrido de dupla adoração. Problematiza ainda as lições que podemos aprender actualmente através da leitura histórica desses edifícios e da valorização da sua diversidade que é, em si mesma, a sua maior riqueza.
Tomasz Tomaszek apresentou o estado de abandono e degradação a que foram votados inúmeros edifícios de minorias religiosas do seu país que, por razões de natureza política e religiosa, deixaram de habitar esses territórios. O investigador realça o facto de, até à Segunda Grande Guerra Mundial, coexistirem pacificamente na Polónia várias minorias religiosas. Entre essas, destaca a comunidade de judeus e de católicos gregos e o valor patrimonial das suas realizações arquitectónicas, cuja utilização e reaproveitamento na actualidade são motivo de dúvida e incerteza.
Curiosamente, a tónica subjacente aos dois exemplos apresentados é o uso e importância que as comunidades residentes na actualidade atribuem ao património arquitectónico e o facto de nele se reverem e reconhecerem a sua história e identidade comum. Jukka Jokilehto, conselheiro do ICCROM (Centro Internacional para a Conservação e Restauro dos Bens Culturais, instituído pela UNESCO), e um dos oradores convidados para a sessão de encerramento do primeiro dia, destacava a sua convicção de que a alegada transculturalidade do património arquitectónico acaba por ser tautológica, porquanto a própria conservação dos edifícios e monumentos no tempo longo só é possível por terem sido usados e praticados pelas diversas comunidades que fazem parte da nossa História comum.
Numa das mais belas frases escritas por Marguerite Yourcenar no romance histórico Memórias de Adriano, a autora afirma que construir é colaborar com a Terra e que, reconstruir, é colaborar com o Tempo. Em Arquitectura, a noção da acumulação do tempo e a necessidade de o encaramos na prática projectual será porventura um dos princípios basilares para que nos possamos posicionar na actualidade e projectar no futuro. Não há apenas uma maneira de fazer nem existem receitas infalíveis para salvaguarda da herança cultural. Sobretudo olhando para a diversidade patrimonial com que nos deparamos ao ver exemplos que nos chegam de todo o mundo. Existem várias maneiras de fazer e de refazer. E ainda bem!