Um dos aspectos mais importantes e decisivos na conformação do território que hoje conhecemos como Norte de Portugal teve origem no aproveitamento de um caminho de origem proto-histórica, designado “Rota do Ouro”1, que ligava a Meseta Interior ao litoral atlântico e que, aquando das incursões militares romanas que conduziram à conquista definitiva da Península Ibérica, se estabeleceu como via militar entre Braga e Astorga, por Chaves.

Embora se tenha convencionado informalmente atribuir-lhe a designação de Via XVII do Itinerário de Antonino, a partir de uma impressão feita em 1735, por P. Wessiling, o seu nome à época romana é desconhecido. Talvez, como forma de a distinguir da Via Nova, que ligava as mesmas duas cidades capitais de conventus, se designasse Via Antiqua, sem qualquer referência a uma sequenciação numérica. Será essa a designação assumida no presente artigo, para nos referirmos à mais antiga estrada entre Braga e Astorga.

A questão mais inquietante e, simultaneamente, de maior interesse da Via Antiqua é a percepção de que o seu valor histórico e civilizacional2 não é colocado ao serviço da actualidade e, especialmente grave, da arquitectura na actualidade. Sobretudo em Portugal. Neste aspecto, ganha relevância o pensamento de Joseph Rykwert, ao sugerir que a forma como interiorizamos a experiência da estrada no comportamento humano, remete para padrões de comportamento mais arcaicos do que a experiência da cidade e da construção da cidade, e para noções metafóricas da própria estrada.

O desenvolvimento de um caminho percepcionado, de uma direcção que foi seguida durante milhares de anos, anterior à existência de qualquer tipo de construção, introduz uma dimensão metafórica e cognitiva que a mono-funcionalidade da estrada actual, não considera e torna redutora. É precisamente esta dimensão temporal e cognitiva, de um processo de transformação no tempo longo, que nos parece de extraordinário interesse na Via Antiqua. A própria evolução do traçado e as suas sucessivas nomenclaturas3, são também uma demonstração das variações políticas e administrativas do nosso território. Uma estrada é via imperial, essencialmente estratégica e administrativa, nos tempos romanos. Na Idade Média, ela recebe o nome de via pública e liga povoações próximas, reflectindo uma economia fechada e senhorial. Na época seguinte, adopta o nome de estrada real e expressa a centralização política (...). Na Idade Contemporânea, depois de ter sido vencida durante meio século pelo caminho de ferro, a estrada triunfa, toma o nome de nacional e torna-se escrava da velocidade4.

Na Via Antiqua, o processo de transformação serve de ilustração perfeita ao que se referiu no parágrafo anterior. Aproveitada pelo poder romano no processo de conquista do Noroeste Peninsular; utilizada então como canal de escoamento dos recursos agrícolas e mineiros da região e como armadura do Estado, atingindo a concepção mais alta da rede em que estava inserida5. Na Idade Média, sobretudo após a assinatura do Tratado de Zamora em 1143 e a fundação de Portugal, o traçado da Via Antiqua dividiu-se em dois e deixou de significar a comunicação entre Braga e Astorga. Na nova ordem política, consolidou-se a fronteira entre os dois países e a Via Antiqua manteve uma importância estratégica no período medieval, como o comprovam os vários castelos ao longo do seu traçado, sobretudo entre Póvoa de Lanhoso e Bragança. Em certo sentido, o fecho da fronteira e da economia reflectem-se no seu traçado e uso; Já no séc. XX, depois de um período em que o caminho de ferro finalmente atravessou as montanhas do interior norte, deixando marcas na paisagem que, aparentemente, já não interessa preservar6, como se não fossem também património e cultura, a quase totalidade da Via Antiqua foi aproveitada e convertida na Estrada Nacional 103, que se mantém em uso até à actualidade.

Todas estas transformações indicam que, para além da importância decorrente do seu uso, que é evidente, existe a tal importância cognitiva e metafórica de um caminho ou percurso a percorrer, que lhe é anterior e que nela reconhecemos, ainda que intuitivamente. E será, porventura, apenas através do recurso ao seu valor metafórico e cognitivo como gesto de planeamento, que estradas antigas como a Via Antiqua poderão contribuir decisiva e activamente para o planeamento do território. Mais do que enaltecer ou sublinhar o seu valor histórico e patrimonial, relativamente conhecido, importa reconhecer neste objecto milenar a importância económica, social e arquitectónica, sem as quais a própria valorização do território e a sua requalificação paisagística e urbana ficará incompleta.

Por outro lado, se tivermos em consideração a fragmentação existente actualmente no território português, com todas as assimetrias entre litoral e interior, que derivam essencialmente da concentração de focos culturais em dois ou três lugares mais tentadores, facilmente poderemos concluir que um objecto como a Via Antiqua que, em toda a sua extensão, ultrapassa a largura do território português, poderá e deverá constituir-se como um maravilhoso instrumento de leitura do território, porquanto encerra em si todas as contradições e complexidades das marcas deixadas pelas transformações e permanências no tempo longo. Voltaremos a este assunto com alguma regularidade.

Notas

1De acordo com Francisco Sande Lemos, essa designação foi atribuída à Via Antiqua por Mário Varela Gomes.

2"Um caminho é um testemunho de civilização. Na verdade, embora possa ser facilitado e maximamente influenciado pela geografia natural é sempre, desde a senda pré-histórica à moderna auto-estrada, uma criação humana”. Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Vias Medievais entre Douro e Minho, 1968, p. 3.

3Referimo-nos às diversas nomenclaturas que alguns troços da Via Antiqua ainda preservam, como: geira, breia, calçada, lameiros da calçada, estrada da calçada, estrada antiga, estrada mourisca, carretera do bispo, entre outros.

4Carlos Alberto Ferreira Almeida, Vias Medievais entre Douro e Minho, 1968, p. 4.

5A Via Antiqua estava inserida no Cursus Publicus das estradas de Roma, o mais desenvolvido sistema de correio do mundo clássico, destinado ao transporte de mensagens, oficiais e impostos recolhidos nas várias províncias do Império.

6Referimo-nos à Linha do Corgo, que ligava a Régua a Chaves e, em especial, à Linha do Tua, que ligava o Tua a Bragança. Ambas desactivadas.