O escritor russo Isaac Asimov (1919 ou 1920 – 1992, Figura de entrada) destacou-se no género da ficção científica, sendo referência incontornável para os seus apaixonados. Emigrado nos EUA desde os 3 anos de idade, teve uma vida plena de interesses e dedicações, sendo doutorado em Bioquímica, apaixonado por histórias de Sherlock Holmes, presidente da American Humanist Association, divulgador de ciência, conselheiro na produção de filmes como Star Trek: The Motion Picture (1979). O leitor poderá conhecer o filme I, Robot, com Will Smith, baseado numa história de Asimov que desenvolve ideias subjacentes às suas famosas «três leis da robótica».

Um dos contos de Asimov, «Sensação de Poder», incluído na série Nove Amanhãs, tem uma temática curiosa, desenvolvendo a ideia de uma civilização futura, desconhecedora de algoritmos para as quatro operações aritméticas fundamentais. Nessa civilização, apenas máquinas e computadores conseguiam efectuar cálculos. Os humanos tinham de os usar sempre, mesmo para os cálculos mais elementares. A certa altura, aparece Myron Aub, um jovem que começa a ficar curioso. Constrói uma tabuada da multiplicação, percebe mecanismos para levar a cabo as operações e começa a fazer contas autonomamente.

Eis alguns diálogos maravilhosos do conto (tradução livre):

(…)
-É esse o talento que nos traz? Um ilusionista?
-Mais do que isso, senhor. Aub decorou algumas operações e, com elas, é capaz de fazer cálculos num papel.
-Um computador de papel? - perguntou o general, aflito.
-Não senhor - disse Shuman pacientemente. - Não é um computador de papel. É um simples pedaço de papel. General, o senhor faria a gentileza de sugerir um número?
-Dezassete - disse o general.
-E o senhor, deputado?
-Vinte e três.
-Óptimo. Aub, multiplique esses números e, por favor, mostre como o consegue fazer.
-Sim, programador - disse Aub, acenando com a cabeça.

Tirou um bloco de um dos bolsos da camisa e uma caneta de bico fino do outro. A sua testa enrugava-se enquanto desenhava meticulosamente no papel. O general Weider interrompeu o bruscamente.

-Deixe-me ver isso (Aub entregou-lhe o papel).
-Bem, isso parece o número dezassete - disse Weider.

O deputado Brant abanou a cabeça em sinal de reprovação.

-Realmente parece, mas eu acho que qualquer um pode copiar os números de um computador. Talvez até eu possa fazer um dezassete razoável, mesmo sem prática.
-Se vocês deixassem o Aub continuar… - disse Shuman, sem se perturbar.

Aub continuou, com as mãos um pouco trémulas. Passado algum tempo, disse em voz baixa:

-A resposta é trezentos e noventa e um. - O deputado Brant confirmou no seu computador.
-Deus, é isso mesmo. Como é que adivinhou?
-Ele não adivinhou, deputado - disse Shuman. - Ele fez a conta nesse pedaço de papel.
-Conversa fiada - disse o general, impaciente. - O computador é uma coisa, desenhos no papel são outra.
-Não acredito - disse o general Weider. - Ele vem com essa conversa fiada, desenha os números, multiplica, soma, mas eu não acredito. É demasiado complicado. Não pode passar de um truque.
(…)
-É engenhoso e interessante - disse o presidente, depois de pensar um pouco - Mas qual é a sua utilidade?
-Qual é a utilidade de um bebé recém-nascido, Sr. Presidente? Por enquanto, não tem nenhuma utilidade, mas o senhor não vê, isso aponta para um caminho que libertará os computadores.

(… últimas frases do conto)

Nove vezes sete, pensou Shuman com orgulho, sessenta e três. Já não precisava de uma máquina. A sua própria cabeça era um computador. E isso dava-lhe uma fantástica sensação de poder.

Uma ideia vital relativamente a este conto de Asimov é o facto de imediatamente parecer absurdo. O que fez de Asimov um excelente escritor de ficção científica é precisamente ter compreendido que há uma grande diferença entre o absurdo e o anedótico. E, ciente dessa diferença, utilizou o absurdo para fazer o leitor pensar. Se o conto fosse sobre a história de um elefante com sete trombas capaz de cuspir fogo, então seria anedótico. Talvez fosse engraçado, mas dificilmente seria boa ficção científica. Podia ser entretenimento, mas castraria todas as analogias que o leitor quisesse fazer.

O bom absurdo traz consigo comparação. O absurdo revela-se quando se compara a ficção com a realidade. Ao fazer-se isso, surge a reflexão sobre essa realidade.

A última frase explica em todo o seu esplendor o absurdo deste conto. Aliás, só o título já explica o absurdo. Há coisas que se fazem e compreendem apenas porque podem ser feitas e compreendidas. É uma sensação de poder, ambição humana fundamental.

Para que uma coisa possa ser feita, tem se ser alcançável. Algo passível de ser compreendido. Ou seja, a possibilidade de compreensão é uma condição necessária para que algo possa ser feito e analisado pelo ser humano.

O que é maravilhoso é que a condição não só é necessária mas, de certa forma, também é suficiente. Se uma coisa é passível de ser compreendida e desperta interesse, em algum momento da história será compreendida. Porquê?

Porque se pode!

«Yes, we can!», disse Obama.

«We choose to go to the Moon! ... We choose to go to the Moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard; because that goal will serve to organize and measure the best of our energies and skills, because that challenge is one that we are willing to accept, one we are unwilling to postpone, and one we intend to win …», disse Kennedy.

Essa é a moral da história de Asimov. É da natureza humana querer compreender e querer levar a cabo coisas alcançáveis a que se dá importância. É tão natural como usar as pernas para andar. Não é por haver motas que se deixa de correr os 100 metros. O assunto está lá para ser compreendido, logo alguns vão compreender. Os políticos mais brilhantes são aqueles que compreendem a natureza humana. Os discursos citados de Obama e de Kennedy não são apenas para empolgar; são viscerais.

É aqui que reside o absurdo de Asimov. Nunca haverá uma sociedade humana como a que ele descreveu. E ele sabia bem isso; trata-se de um conto irónico e provocatório. Alguns humanos vão sempre querer compreender as coisas que são alcançáveis. Não é por haver computadores, veículos ou máquinas que o deixam de fazer. Também não é um conto sobre memorização da tabuada da multiplicação versus não memorização. Claro que já foi usado para esse debate (bastante tonto, por sinal), mas não se trata disso; trata-se da natureza humana, essa sim, tema central do conto.

Há um episódio da série Star Trek em que dois planetas em guerra tomaram uma decisão ultra racional. Em vez de rebentar as infra estruturas e edifícios, os povos desenrolavam a guerra através de um jogo de computador. Sempre que alguma das partes perdia uma batalha (no jogo), os derrotados apresentavam-se para serem mortos, num crematório especialmente criado para o efeito (na vida real). Dessa forma, havia vítimas de guerra, mas as infra-estruturas eram preservadas. A guerra estava magnificamente organizada por ambas as partes.

Racional, mas absurdo. Totalmente absurdo! Porquê? Porque partes que não são capazes de se entender a não ser através da guerra, também não são capazes de se entender para criar tal organização. As duas coisas são incompatíveis; se a segunda fosse possível, as conversas seriam certamente orientadas para fazer a paz e não crematórios. Toda a guerra traz consigo irracionalidade. Por definição.

Isto é uma boa peça de ficção científica. Faz o espectador pensar por analogia. É por isso que toda a ficção científica tem de ter elementos de plausibilidade. O bom absurdo tem um toque de plausibilidade. Nesse sentido, a ficção científica não deve ser preguiçosa, procurando criar estes efeitos.

Decorre o ano de 2016, em plena revolução informática. Só por isso, vale a pena voltar ao conto de Asimov. É constatável que, muitas vezes, a realidade ultrapassa a ficção. Neste ponto, parece ser o caso. Na actualidade, o que é impressionante não é o que os computadores fazem que as pessoas são capazes de compreender, mas sim o contrário: o que os computadores fazem que as pessoas não são capazes de compreender. Isso sim é desconcertante e, em certa medida, assustador.

Há conquistas tecnológicas que são verdadeiramente impressionantes e bem compreendidas. Outras são igualmente impressionantes, mas ninguém é capaz de as compreender na sua plenitude. Por esse facto, suscitam todo o interesse. É algo completamente novo.

Em 1997, munido de consultas a todo o tipo de bases de dados (aberturas e finais) e avaliando cerca de 100 milhões de posições por segundo, o Deep Blue venceu pela primeira vez um campeão mundial num match (Deep Blue 3,5 Kasparov 2,5) (Figuras 1-3).

Um aspecto relacionado com este episódio diz respeito às bases de dados de finais (usadas pelo Deep Blue). Hoje em dia, essas tablebases são capazes de saber o resultado de posições com um número limitado de peças (até 7 peças, na altura em que se escreve este artigo). Uma tablebase funciona como um oráculo, mostrando a melhor sequência para as Brancas e Pretas. Quando um dos lados tem a partida ganha, estas bases de dados indicam automaticamente a quantos lances o lado ganhador está de dar xeque mate. O leitor curioso pode consultar de forma gratuita a verdade sobre posições com um número máximo de 6 peças.

Através dessas bases, é possível ter acesso a ocorrências absolutamente misteriosas, desconhecidas até ao tempo presente. Há posições inacreditáveis em que o computador informa sobre a existência de xeque mate forçado em 517 jogadas!

Há outras posições em que as Brancas, jogando primeiro, perdem em 81 lances e as Pretas, jogando primeiro, perdem em 42 lances. Muitos destes casos envolvem dezenas de movimentos únicos que nenhum ser humano pode perceber.

A este propósito, Tim Krabbé (1943-), talvez a mais importante figura no que diz respeito a todo o tipo de curiosidades xadrezísticas, disse

(…) É uma espécie de xadrez que não tem nada a ver com o xadrez, algo que nunca poderíamos imaginar sem computadores. Os movimentos são quase assustadores porque sabemos que são a verdade, o Algoritmo de Deus - é como se o sentido da vida fosse revelado, mas sem que se entenda uma única palavra. (…)

O leitor pode pensar, com razão, que se trata de uma questão de força bruta, fruto do facto de o computador ser capaz de avaliar centenas de milhões de posições por segundo. Trata-se de capacidade, não de estilo.

A contrastar um pouco com essa ideia verdadeira, temos o caso da vitória recentíssima de AlphaGo, em 2016, contra um dos melhores jogadores do mundo de Go, um secular jogo oriental de tabuleiro (Figura 5). Este software concebido pela Google DeepMind usou o moderno método de Monte Carlo e um algoritmo de aprendizagem. Através desses métodos sofisticados, o AlphaGo tem a capacidade de aprender com a análise dos seus próprios jogos e de jogos de profissionais. O AlphaGo evolui e, deve o leitor acreditar, nenhum humano pode acompanhar essa evolução. Aos olhos biológicos, daqueles que vertem lágrimas, trata-se de um autêntico «buraco negro».

Por esse facto, este evento já é considerado um importante passo para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial (e também uma derrota para quem pensa que os jogos não são «sérios», nem servem para nada).

Mudando de assunto, há também casos de demonstrações matemáticas com auxílio de computadores. Desde o Teorema das Quatro Cores em 1976 (é possível colorir qualquer mapa com quatro cores) até ao Problema dos Triplos Pitagóricos em 2016 (é possível colorir os números naturais de vermelho e azul sem que nenhum triplo Pitagórico seja unicolor), já foram efectuadas imensas «demonstrações assistidas por computador». Isto é, a verificação de uma quantidade absurda de informação é deixada a cargo da máquina. Há quem não goste disto… Afinal de contas, a demonstração matemática deve servir para convencer totalmente humanos intelectualmente honestos ou é permitido deixar partes dentro desse «buraco negro informático» que se assumem bem verificadas?

Mudando de assunto novamente. E a consciência? Será possível conceber máquinas conscientes? Quais seriam as consequências disso?

Sem entrar muito na temática, até porque é muito misteriosa e ainda mal compreendida (e o autor deste texto é um total ignorante a esse respeito), há que saber primeiro o que é a consciência… António Damásio, neurocientista português da Universidade do Sul da Califórnia que estuda o cérebro e emoções humanas, escreveu muito sobre a consciência para o público em geral. Nos seus livros, este proeminente cientista explica em detalhe que a mente consciente surge quando o «eu» é acrescentado aos processos mentais. O ser humano faz e sabe que está a fazer, sabe que pode agir nessa feitura, sabe que o seu corpo existe e está presente. O desenrolar das acções de cada um obedece a prioridades por si estabelecidas, baseadas nessa consciência de si. Será possível isto acontecer com uma máquina? É uma questão de informação? Se não for possível, a hipótese religiosa parece ser imperativa. Se for possível, surgem perguntas bizarras; «Quantos bits são precisos?», «Qual a magnitude de informação necessária?», «Como se pode saber se isso está a acontecer?!». E, ainda mais assustador, admitindo essa possibilidade, o que aconteceria depois?

Certamente não seria uma sensação de poder como a da personagem Myron Aub de Isaac Asimov, mas sim uma completa sensação de impotência… Novas consciências, novos mistérios absolutos…

Se o leitor quiser continuar na ficção científica, adequada para reflectir sobre estes assuntos, aconselham-se os filmes recentes Her (Spike Jonze, 2013) e Ex Machina (Alex Garland, 2015). O primeiro dos dois de uma plausibilidade horrenda…