“O conflito observado externamente entre homens e mulheres nada mais é do que a projeção do conflito interno de cada pessoa, entre sua parte masculina e feminina. Encontra-se, então, nas raízes deste conflito, uma identidade não resolvida, negada, ou pouco conhecida” (Cavalcanti 1987).

Não há quem não tenha experimentado em sua própria experiência de vida a dois, que a convivência se revela de fato, uma arte e uma complexa urdidura. Pois...

  • é na convivência que as máscaras caem;
  • é na convivência que se torna impossível o esforço de continuar sendo a pessoa que o parceiro deseja que sejamos;
  • é na convivência que nos descobrimos na verdadeira dimensão do nosso egoísmo: é difícil ceder; é difícil afinal, entender e aceitar que o outro pensa e sente à sua maneira. Está-se sempre pensando e decidindo pelo outro.

Individualidade na relação: talvez este seja o maior desafio.

Há que se considerar ainda que com a nova redefinição dos papéis sexuais tudo se torna muito confuso, pois nem se assimila totalmente os novos padrões nem se abandona o passado de vez.

Segundo Jung et alii (1969), o matrimônio pode ser considerado um rito de iniciação em que o homem e a mulher precisam submeter-se mutuamente. Para o homem, frequentemente o matrimônio se converte em uma espécie de prisão governada por uma poderosa figura materna. Independente disso, o rito matrimonial é um rito de iniciação da mulher onde o homem é mero coadjuvante. Em contrapartida, a mulher muitas vezes teme perder sua identidade em um casamento onde o patriarcalismo impera.

Vaitsman (1994) relata que, em sua rebelião contra a família e o casamento modernos, as mulheres desafiaram duas dicotomias típicas da construção de gênero da família conjugal moderna brasileira: a primeira, entre papéis públicos e privados atribuídos segundo o gênero; a segunda, referente às normas de comportamento afetivo-sexual diferenciadas para homens e mulheres.

A ruptura da dicotomia entre público e privado, segundo o gênero, não resolveu os dilemas das desigualdades entre homens e mulheres, mas mudou seus fundamentos de legitimação. Não eliminou as distintas funções no casamento e na família, mas deixou em aberto quem deve desempenhá-las e quando elas devem ser desempenhadas.

Segundo a autora, permanece nos casamentos pós-modernos a tentativa de resolver o conflito entre o individual e o coletivo. Agora, além de adquirir a consciência de que a individualidade de cada um ergue barreiras entre os dois, perdeu-se a convicção de que duas e somente duas pessoas sejam feitas uma para a outra. Assim como o casamento, a família não desapareceu; assumiu novas formas, tornou-se plástica, flexível, refazendo seus limites frequentemente.

A identidade, como o casamento e a família, também se tornou plástica e flexível, o que não significa que o indivíduo tenha anulado sua individualidade. Ele não perdeu sua capacidade de sentir, criar e produzir mudanças; ainda quer algum tipo de segurança e estabilidade (Vaitsman, 1994).

A partir das transformações das mulheres, os processos de educação passaram a correr o risco de serem ambíguos e contraditórios: a mulher passou a querer do homem uma resposta ao seu novo modelo, mas também deseja comportamentos e atitudes ligados ao modelo tradicional. Paralelamente, nas mentes dos homens não lhes é permitido ter certos sentimentos, tais como fraqueza, insegurança e vulnerabilidade. “O homem não deve se apaixonar senão a mulher o abandona...” Tais sentimentos são reservados às mulheres. No vínculo com a mulher muitos homens supervalorizam o desempenho sexual.

Segundo Almeida (1996), o cenário constituído pela família patriarcal é uma ‘arena’ onde se verifica o caráter difuso e impreciso que impede a demarcação rigorosa e nítida de noções como legitimidade e ilegitimidade, certo e errado, presente no elenco de valores que orientam comportamentos, atitudes e práticas dos indivíduos na sociedade brasileira.

A autora acrescenta que “os homens são mais infiéis do que as mulheres, não por uma questão cultural, mas por uma questão de autoavaliação. Ele precisa saber se é só com aquela. Se é feitiço ou é ancestral. Ele precisa saber se não está possuído por aquela mulher, se aquela mulher não é uma feiticeira. A quebra desse encanto é a traição. É a raiva surda que o homem tem de pertencer a alguém; ele não foi criado para isso, ele é um senhor sobre a terra” (Almeida, 1996, p. 99).

Segundo Cuschinir (1992), o homem costuma fugir de um contato mais profundo, constante e duradouro com a mulher e se questiona: “O quanto vou me entregar e ficar nas mãos dela, perdendo qualquer poder?...” O medo da perda da identidade masculina impede o homem de viver e experimentar em profundidade os sentimentos e emoções da relação afetiva. Esse bloqueio torna-o mais frágil e mais exposto ao tédio, à traição e a separações.

O autor acrescenta que, de fato, os dois gêneros têm uma visão e uma experiência da vida diferentes e pensam de maneira distinta. Contudo, evidências de pesquisas mostram que a mulher não é só emoção e intuição. Ela é inteligência também e necessita não de favores, mas de oportunidades, para construir uma carreira e perseguir objetivos intelectuais.

A identidade feminina é tão carente de revitalização quanto a masculina, mas os motivos são diferentes. Enquanto homens tentam suicídio por orgulho ferido na competência profissional, mulheres que conquistam o mercado de trabalho continuam tentando suicídio ao sentirem que falharam em seus vínculos amorosos, familiares ou fraternos. Os relacionamentos são questões essenciais em todos os aspectos da vida das mulheres. Assim, elas usam a conversa para expandir e aprofundar seus relacionamentos enquanto eles usam soluções convenientes tentando encerrar conversas. As mulheres tendem a olhar as pessoas vendo uma dependência mútua entre elas; para os homens, “o bom é se virar sozinho”. Enquanto as primeiras dão ênfase ao carinho, estes últimos valorizam a liberdade. A mulher considera ações dentro de um contexto que a englobe; o homem tende a olhar para os eventos isolada e discretamente (Cuschinir, 1992).

Meninas exploram o exterior diferentemente dos meninos, pois lhes é estimulado o desejo e a possibilidade de desenvolver o papel de ‘cuidadoras’ de alguém e ao mesmo tempo estar se cuidando. O ônus desta postura consiste na transformação desses papéis em estereótipos, tais como: mulher doadora, mãe do homem, mulher proibida de aventurar-se. No entanto, neste período de transição, se algumas mulheres ainda têm nesses padrões um referencial forte e determinante em que se baseiam ao pautar sua trajetória cotidiana, outras estão redescobrindo seu papel e estão em busca de outros valores que venham a se constituir nos marcos de um caminho próprio.

Assim, é na tentativa de um ajustamento saudável que homens e mulheres costumam se redescobrir em novas dimensões de suas identidades ao mesmo tempo em que recriam seus papéis.

A recusa e o questionamento aos papéis estereotipados geram o desafio do constante devir. Isto é, o fato das relações no ambiente doméstico estarem sendo revistas exige flexibilidade, ‘jogo de cintura’ e maturidade para se adequarem às situações novas.

A velocidade das mudanças dos usos e costumes na sociedade contemporânea faz lembrar a frase de Darwin, oriunda da biologia de que “apenas os mais aptos sobrevivem”. Sim, muitos casais se acomodaram aos antigos padrões e permanecem juntos por conveniência; suas relações estão “mortas” do ponto de vista da gestação de um setting amoroso, que proporcione continência ao parceiro e favoreça o desenvolvimento pleno de seus rebentos.

Aos casais que estão dispostos a enfrentar a complexa urdidura de uma tentativa de ajustamento cabe escrever de próprio punho uma história plural, uma história para a qual não há receitas prontas, apenas um ponto de partida e um horizonte ao longe...

Um desafio à autoconfiança de todos nós.

Referências

ALMEIDA, M.I.M. de - Masculino/feminino: tensão insolúvel: sociedade brasileira e organização da subjetividade. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1996.
CAVALCANTI, R. - O casamento do sol com a lua. São Paulo, Círculo do Livro, 1987.
CUSCHNIR, L. - Masculino/feminina. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1992.
JUNG, C.G.; VON FRANZ, M.L.; HENDERSON, J.L.; JACOBI, J.; JAFFÉ, A. - El hombre y sus símbolos. Madrid, Aguilar Ediciones, 1969.
VAITSMAN, J. - Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1994.