Já ouvi muita coisa, já senti muita alegria pela integridade de uns e já me levantei de mesas pela crueldade de outros. Já vimos muitos Orlandos. Já sentimos muitas vezes a descrença na bondade, na justiça, na igualdade. Tantas foram as vezes que já lemos a pergunta “Porquê”. Tantas foram as vezes que a surpresa nos deixou na inércia. Por Orlando, por Paris, pela Alemanha, pela Noruega, pela Bósnia, por Darfur, por Timor Leste, por Ruanda ou a Arménia. São tantas as lágrimas que vertemos e verteremos, tantas vezes reagimos com uma irracionalidade que tentamos racionalizar. E continuamos sempre a voltar ao mesmo lugar. O lugar da dissemelhança, da desigualdade, da multiplicidade. O desejo de distância, de hierarquização, de humilhação, de finitude para com os outros que são “diferentes”.
Em que momento é que alguém passa a olhar para o outro como sendo indigno da existência humana? É desumanizar ao ponto de objetificar, deitar ao lixo porque é altura de fazer “limpezas”. O que despoleta esta distinção e faz alguém sentir-se como sendo entidades superiores? A diferença deveria levar ao enriquecimento, à partilha, à criação de ideias, de perspetivas e geometrias vitais. O que faz alguém acreditar que tem qualidades físicas, morais e mentais tão superiores a outro ser humano que lhes dá o direito de decidir a vida ou a morte desse alguém? Alguém. Alguém faz acreditar que uma existência vale mais do que a outra. Porquê?
As tragédias são incomparáveis, são irrepetíveis e imensuráveis para a alma e o coração de cada um e de todos nós. Porque cada vítima tem um nome, um rosto, uma família, uma existência. A dor é um entendimento comum, tal como a indignação, a revolta ou a impotência. Sentido de forma particular, é exteriorizada individual e, muitas vezes, coletivamente. Unimo-nos pela empatia, pelo reconhecimento, e muitas vezes pela indignação de temer a eminência do ato de outros seres humanos que são movidos pela raiva num mar de certeza infinita. Vivemos num mar de medo.
Esgotam-se as perguntas, reescreve-se a história. Se para uns os acontecimentos passados são trágicos, são episódios que não desejamos rever, momentos que não queremos reinventar; para outros são motivo de orgulho, honra e justiça, são exemplos a seguir e a repetir. Exterminar para conquistar. A evolução de consciência, os sinais de respeito e a moral são resultado da necessidade de uma existência determinada pela diversidade e pela diferença. Mas a diferença não é sinónimo de superioridade ou inferioridade.
Determinamos árbitros e mediadores que se regem pelas regras de uma existência individual que se desenvolve através do coletivo. Mas não somos juízes ou algozes, não podemos ser. A raça não é uma opção, a sexualidade não é uma opção, a incapacidade física ou mental não é uma opção, a etnia não é uma opção, o género não é uma opção. Não podem ser motivos para julgamento, para atribuição de altares ou crucificações. Por outro lado, a mudança é uma opção, a postura também, tal como a integração e a adaptabilidade. Atuar com respeito, escolher a adaptação, tentar a compreensão e manter a dignidade é uma afirmação da existência individual. O preconceito, a instigação à desigualdade, a certeza de existências superiores são afirmações da existência individual. O problema é quando se tornam afirmações de existências coletivas. É neste momento que alguém acha que tem o direito de decidir quando a existência de outros seres humanos é indigna e injustificada. É neste momento que alguém decide que a vida de outros não vale a pena. Porque muitos outros acham, porque o afirmam na coletiva. Não existe um mar de certeza infinita. Num mar grande, um remoinho pequeno causa ondas gigantes.