Todo o mundo nasce num determinado lugar. Nada mais natural. Esse lugar determina muitas características na vida de uma pessoa, e dentre elas talvez a mais relevante seja a sua língua materna, que abarca todo um código de condutas e de relacionamento com o seu entorno.
Quando, por qualquer motivo, você deixa esse lugar e passa a viver em outro, você se torna um estrangeiro (do Latim extraneus “o que é de fora, desconhecido, não-familiar”). Como tal, o seu papel é aprender um novo idioma e a mover-se dentro de um novo código de regras de conduta e de convivência. É como se você fosse uma visita: pega muito mal incomodar os moradores ou tentar impor o seu estilo de vida ao dono casa. Isso não é subserviência, é respeito pelo outro.
Mas chega uma hora em que ser a amiga brasileira, a funcionária brasileira, a vizinha brasileira, a inquilina brasileira começa a cansar. Faço um adendo: não há aqui nenhum tipo de complexo. Não tenho nenhum delírio “vira-latista” e tampouco ufanista em relação a minha nacionalidade. Sou o que sou e não tenho vergonha ou rancor, e quando me perguntam de onde eu sou, eu obviamente digo a verdade prontamente. No entanto, eu me pergunto porque, entre tantas características na personalidade de alguém, a escolha do meu epíteto frente aos demais seja sempre essa. A minha nacionalidade.
Estas palavras que denotam nacionalidade (brasileiro, francês, russo...), vêm sempre carregadas de um significado pouco concreto, altamente imagético e contém um perigoso potencial estereotípico. E esse potencial aumenta exponencialmente quando um indivíduo vem de um contexto geográfico considerado periférico.
Ser da América Latina não é fácil. Somos um continente gigante, potente, com enormes problemas estruturais na nossa economia e em nossos mecanismos políticos e sociais, dos quais temos uma dificuldade descomunal em desvencilhar-nos, acima de tudo porque isso entraria conflito com os interesses de países mais poderosos que os nossos. Mas, apesar de tudo somos incrivelmente numerosos, ricos em recursos, criativos e temos muito valor. Ninguém em sua sã consciência, hoje, despreza o mercado latino americano. Quando estamos bem, todas as grandes potencias globais se aproximam porque querem um pedaço da torta. Quando estamos mal, suas economias sofrem as consequências também. Contudo, hoje ainda somos colocados na periferia do mundo. Não pela economia, não pela importância geopolítica, mas pelo discurso. E isso é infinitamente mais nocivo.
Ser a inquilina brasileira é cansativo porque eu pago o mesmo aluguel, a mesma fiança que qualquer um pagaria, mas tenho que procurar o triplo para conseguir alugar uma casa. Porque tenho que olhar no rosto do proprietário ou de quem seja e ver a expressão dele mudar quando eu respondo à pergunta “De onde você é? ”, e depois nunca mais receber resposta sobre aquele imóvel.
Eu não vejo ninguém sendo apresentada como “a minha amiga italiana” ou “a minha amiga francesa”. Eu sou quase sempre apresentada como a “minha amiga brasileira”, em especial para os rapazes solteiros. E é assim, sem nenhuma maldade ou crueldade, com total naturalidade, que essa bomba é lançada nas minhas mãos. Ser a moça brasileira (com todos os estereótipos errôneos que isso abarca) no bar, numa festa, no mundo. Qual é a real importância desta informação para alguém que eu nem conheço? Por que existe essa necessidade tão clara em demarcar o meu território (e o meu não-território)? Por que essa mesma necessidade não existe em relação a todos os estrangeiros? É precisamente aí onde começa o rol de constrangimentos, a chuva de bobagens e preconceitos.
Que desânimo.
O que eu aprendi sobre esse tema vivendo fora, sobre a minha nacionalidade em particular, é que é extremamente frustrante para as pessoas que você seja uma pessoa normal e corriqueira. Eu ainda não descobri o que se espera exatamente, mas ao que parece não é alguém com traços europeizados e de pele branca, a menos que você seja uma modelo internacional de 1,87m de altura. Nem que fale bem outro idioma, que seja honesta e muito menos que você não precise arrumar um marido (e “roubar” os homens locais com a sua luxúria e malandragem) para conseguir papeis de imigração. Talvez ajudaria se eu usasse plumas e vivesse com uma caipirinha grudada na mão, mas não tenho certeza.
Ironia à parte, eu também me sentiria muito melhor se chegássemos a um consenso de que chamar os colombianos, mexicanos, chilenos, equatorianos, etc., de ‘panchitos’ não é carinhoso. Na verdade, deveria ser inaceitável porque é obviamente racista. Os hispano-americanos não têm nada de “itos”, eles não são uma versão menor, mais limitada do europeu. Mas essa palavra está por aí, saindo da boca de gente bacana, liberais, socialistas, ovo-lacto-vegetarianos.
Toda a linhaça orgânica, carteirinha do greenpeace e postagem a favor dos refugiados não farão de ninguém um ser humano decente enquanto for normal continuar tratando o estrangeiro com esse tipo de desdém jocoso. Enquanto for aceitável chamar marroquinos, sírios e turcos indistintamente de mouros, entre outras barbaridades vernáculas. É especialmente doloroso sabendo que a razão para tal é o outro simplesmente ter nascido num lugar que o “sujeito local”, equivocadamente, se considera no direto de achar inferior. Não é um direito nosso julgar uma terra à qual não pertencemos ou conhecemos, e nunca será.
Este é um ponto delicado, aonde nos deparamos com o cerne da questão. Este é um discurso verticalizado. Ele surge nas instâncias mais altas com o objetivo de mitigar o preconceito, e por algumas vezes inclusive instilar o medo e o ódio, e se propaga livremente entre os tolos que reproduzem esses absurdos tão repetidamente que chega a parecer normal, desprovido de maldade. Mas, uma boa intenção não justifica que eu avalize o preconceito. Talvez pareça um salto muito grande fazer essa comparação, mas se pensarmos objetivamente, estamos realmente tão longe de Auschwitz?
É extremamente difícil saber onde traçar a linha, onde fica o limiar do que é tolerável. Por um lado, é verdade que quando se é estrangeiro, o respeito com o novo lugar deve ser redobrado com muita atenção. Mas, e o contrário? Será que só o fato de eles serem os “donos da casa” lhes dá o direito de manifestar-se em relação ao de fora de forma pejorativa? Com que valores estamos sendo coniventes ao aceitar esse discurso?
Há muitas perguntas e apenas algumas respostas. No entanto, o que eu posso afirmar com convicção é que as palavras são entidades extremamente poderosas. Palavras ferem a alma e às vezes também a carne. Palavras mudam o presente e definem o futuro. Palavras podem construir pontes, mas também destruir sonhos. As palavras libertam. Mas elas também matam.
Por isso é tão importante que busquemos em nosso âmago a coragem e o valor de olhar para o outro como uma extensão de nós mesmos. Tratá-lo como eu próprio gostaria de ser tratado. Precisamos humanizá-lo antes que a nossa comunicação se torne impossível e só nos reste o conflito. Não é difícil. Podemos começar buscando outras palavras.