Tudo que não invento é falso. Manoel de Barros
Jorge Mealha é um artista africano. Nasceu em Moçambique em 1934. Mas Jorge Mealha não é um artista africano. O seu percurso artístico, bastante longo, é fruto de um ensino feito em escolas europeias, com influências também elas vindas da Europa, sobretudo de Portugal. Nos tempos que correm temos a tentação de identificar os artistas, e a arte, com um território, um país, um continente. O mundo passa por uma grave crise de identidade – entre o esboroamento das fronteiras, a disseminação e a interpenetração das culturas – a questão da pertença ocupa um lugar central nas discussões contemporâneas. Pertença a um espaço geográfico circunscrito, mas, principalmente, pertença a um espaço cultural mais vasto.
A arte contemporânea, que é plurilingue e multiforme, tem um traço em comum: a ideia de movimento em direção a. Este movimento é refletido nas diversas formas de criação artística, nos diversos suportes e nos mais diferentes materiais. Em propostas completamente antitéticas, a maior parte das vezes. Contudo, a ideia de busca, seja de uma identidade, seja de uma resposta, seja de uma maneira nova de habitar velhos espaços, é uma constante, talvez a única que esteja presente em todos os artistas da contemporaneidade. A ideia de movimento não é nova no universo da arte, mas antes havia um pensamento utópico que alimentava as incertezas – a certeza de que, no final, encontrar-se-ia uma resposta. Hoje o movimento é uma espécie de moto-perpétuo (perpetuum mobile) – como na mecânica celeste onde os astros, estrelas e galáxias giram continuamente. O movimento gera movimento, gera energia, mas não gera certezas. Até porque a ideia de moto-perpétuo contraria algumas leis da Física e é considerado apenas uma hipótese que não tem como ser comprovada.
Um movimento contínuo em direção a qualquer coisa que ainda não se divisa bem, eis um bom epíteto para a arte dos dias que correm. A arte, na contemporaneidade, vive das incertezas e da profunda ambiguidade que é instaurada em cada gesto criativo/criador: é arte ou não é arte? Por isso o teórico argentino Néstor García Canclini diz que a pergunta a ser feita é: quando é arte e não, o que é arte. Porque a arte é aquilo que em determinado momento decidimos chamar ARTE. São objetos que saem do seu contexto de criação, do seu espaço geográfico, do seu sítio convencional e que é convertido, num gesto crítico e criador, num objeto artístico. Se as fronteiras do mundo estão a esboroar-se, com a multiplicação das vias e infovias, também as fronteiras da arte caem por terra. É hoje uma tarefa muito complicada explicar a alguém o que é arte e porque é arte. Todas estas questões são pertinentes quando refletimos sobre a obra de Jorge Mealha.
“Para mim a arte é uma questão de genética”. Filho e irmão de artistas, a arte, para ele, foi uma escolha natural. Mealha experimentou a pintura, o desenho, a escultura tradicional e o batique, mas o seu verdadeiro encontro com a arte aconteceu através de António Quadros e de um torno mecânico. A cerâmica, técnica ancestral, esteve associada, no início, à criação de objetos utilitários e de decoração. Vários artistas, ao longo da história da arte ocidental, tentaram recuperar a cerâmica de um destino tão pragmático e introduziram-na como suporte, técnica ou material para realizar os seus trabalhos. De um modo geral não utilizavam o torno, preferindo trabalhar o barro com as suas próprias mãos, imprimindo, desta maneira, a sua assinatura em cada peça. Se a cerâmica está indelevelmente associada a uma produção em série, esta associação deve-se, sobremaneira, à utilização do torno, um dos primeiros utensílios inventado pelo homem para produzir em larga escala. Mealha encanta-se com a possibilidade de criar objetos, torneá-los, vê-los crescer e formarem-se à sua frente. Porém, encanta-se, principalmente, com a possibilidade de imprimir, em seguida, a sua marca em cada objeto.
No princípio era o cilindro. E do cilindro sai um chifre de touro, uma cabra, um corpo de mulher. Um cilindro que é dobrado sobre si mesmo, reinventado enquanto forma, recriado enquanto superfície. Se Cezànne acreditava que a geometria era a base do universo e via o mundo através de cones e cilindros, tentando captar no movimento constante a única constância, ou a alma mesma dos objetos, Mealha trabalha com a cerâmica nesta mesma direção. De formas únicas, bastante simples – cones, cilindros, esferas, ele cria um universo muito próprio, povoado de animais, figuras humanas, caravelas, vasos, colunas. Do torno as peças passam para as mãos do artista que vai paulatinamente dando um destino diferenciado a uma peça que poderia, à partida, ser um vaso. Do torno, que pode produzir em série, Mealha busca extrair o diverso, o único, ou quase único, a série mais reduzida e controlada pelo criador.
O encontro do artista com a cerâmica foi mais do que um encontro fortuito. Nasceu uma paixão para o resto da vida que o fez percorrer diversos caminhos para aprofundar os seus conhecimentos e a sua capacidade de reinventar, constantemente, a técnica e criar a sua arte. Através de uma bolsa concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian pôde realizar um estágio com Querubim Lapa, no início dos anos 70. Jorge Mealha diz que aprendeu bastante com o mestre, mas que aprendeu, ainda mais, com outro mestre: um ceramista anónimo que trabalhava na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego. Mais tarde vai a Murano onde realiza um estágio na Fábrica Hugo Dogna (fabricação artesanal de vidrados). O percurso do artista parece aproximar-se do percurso de um artesão, e esta proximidade vai marcar a sua criação.
Por um lado temos um artista que nasce em África mas que não é um artista africano, no sentido que se costuma dar ao termo. Por outro lado temos um escultor que escolhe ser ceramista e cuja formação é feita entre os espaços convencionais do ensino artístico e as fábricas de produção de objetos em série. Isto torna a obra de Mealha um fascinante objeto de estudos e um campo propício para controvérsias: artista ou artesão? Artista ou designer? É possível ainda estabelecer fronteiras? “O design é arte”. Jorge Mealha não tem qualquer problema em assumir-se enquanto artista e designer. Porque para ele o mais importante do gesto de criação é a investigação que está por trás da criação e a possibilidade de inventar novas formas e novos usos para aquilo que é convencional ou quotidiano.
Como disse no começo, a arte contemporânea é marcada pelo um movimento em direção a. Faço agora uma retificação: a arte contemporânea é marcada por vários movimentos em diversas direções. Dessacralizada, a arte já não tem uma identidade própria. Produzida e reproduzida em série, perde o seu carácter de objeto aurático, único e original. Teóricos, críticos, artistas, curadores, filósofos e tantos outros andam há muito tempo a procura de definições. Hal Foster teme o vale tudo no campo da arte que pode acabar por esvaziá-la e torná-la sem sentido ou sem direito à existência. A morte da arte preconizada por Hegel pode estar a acontecer neste preciso instante. Mas ao contrário daquilo que o filósofo previra, a sua morte não foi causada pela sua transformação em algo mais intenso, numa forma superior de pensamento – em filosofia – simplesmente morreu de exaustão. Fórmulas gastas e formas desgastadas. Por isso volto à questão de Canclini – não devemos perguntar o que é arte, mas sim, quando é arte.
A obra de Jorge Mealha é arte, hoje, quando falo sobre ela, quando é exposta em forma de retrospectiva. Quando é apresentada num catálogo. Mas é também arte fora do espaço. É arte no tempo. No tempo da maturação de uma técnica, da reinvenção de um saber, da desfuncionalização de objetos e meios funcionais. É arte quando recupera e redefine um gesto ancestral – a capacidade do homem de transformar o barro em vida. Uma das suas obras, Adão e Eva, escultura em grés, ilustra bem esta ideia: cilindros que se sobrepõem, que se fundem e que se complementam. O bíblico par fundacional é apresentado sob a sua forma mais simples e no seu material mais adequado. E é esta simplicidade que marca o percurso do artista.
Podemos classificar a obra de Mealha por séries: os tubos, as caravelas, os utilitários, as figuras femininas, os animais. A série dos tubos é onde a fixação do artista nas formas puras e nas possibilidades de desmaterializá-las, se torna mais evidente. Curvas, nós, laços. São vários os formatos das peças que juntas podem ser prolongadas ao infinito. Todas elas são parte de uma peça única que é torcida, fragmentada, recomposta. Cada uma funciona bem isoladamente, mas quando as vemos lado a lado percebemos melhor a ideia do artista em experimentar, indefinidamente, o mesmo e fazê-lo parecer sempre outro.
Nas caravelas houve um processo de simplificação. Cada uma era desnudada de artifícios até que a forma que está por trás ocupasse o lugar de destaque. A forma deixa de ser suporte e torna-se, ela própria, a peça. Este processo é encontrado ainda nas mulheres e nos animais. A série que chamo “utilitários” é composta de objetos como vasos, potes ou peças puramente decorativas. Aqui o artista experimenta a textura sem variar muito a forma. A sua obra é, coerentemente, um continuum – todas as peças dialogam através das cores, ou da sua ausência, da textura, da sua consciência de ser, antes de tudo, um sólido geométrico. E estes sólidos compõem a alma única de cada objeto.
"O milagre da arte é o que está entre o olho e o objeto, que é a percepção do artista. (...) Acho que a infância de uma pessoa é a sua pátria. A sombra que eu projeto acompanhar-me-á toda a vida. Para mim, a pátria não é um território, nem uma fronteira, nem uma bandeira. É uma ideia, é um ponto de vista. Vai além de uma questão geográfica". O realizador Alejandro González Iñarritu fala da sua obra que é feita por um mexicano mas que é também universal. A ideia da arte, e da criação artística, é um projeto a longo prazo. No caso de Jorge Mealha, é um projeto que o acompanha e acompanhará por toda a vida. E se ele buscou matérias, técnicas e caminhos que o aproximavam da repetição, da série, conseguiu, apesar disto, criar objetos únicos, porque é disso que a arte é feita: da percepção do artista, das suas memórias, das suas imagens, das suas lembranças. Daquilo que ficou para trás, mas que teima em caminhar ao nosso lado. Daquilo que nos torna o que somos, quem somos – únicos! Únicos num mundo de tantos. Jorge Mealha não é um artista africano. Mas nasceu em África. A sua percepção foi amplificada por outras artes e outros percursos. E a sua arte é fruto de tudo aquilo que o acompanhou e que ele, fragmento a fragmento, recompôs e recompõe a cada gesto de criador.