La Dolce Vita é um rito de passagem na obra do diretor. O excesso passa a ser sua marca, o que fez muitos considerá-lo barroco. Utilizando a linguagem fragmentária tão cara a este apreciador de banda desenhada, ele constrói o filme marco de toda uma geração. Após trinta anos ainda é possível ficar atordoado com La Dolce Vita de Fellini. Um helicóptero levando Cristo de braços abertos sobrevoa a Roma de Fellini, sagrada e profana, abençoando seus vícios e virtudes. Uma cidade fascinante que transforma a vida de um provinciano de Rimini, perdido entre o amor e o desassossego. Crônica fiel de um tempo onde as pessoas já não encontram sentido para viver? Muito mais. A pergunta e o medo do diretor se infiltram em seus espectadores. Quem somos nós? O que faz sentido? Perguntas retóricas? Talvez. Mas profundamente perturbadoras e tratadas com maestria pelo mestre da dúvida.

O filme é uma grande incursão (excursão?) felliniana dentro de si. Um processo que será explicitado ao máximo em 8 1/2. Marcello - o jornalista que vaga pela Via Veneto e por uma Roma profana e sagrada - é o alter-ego do diretor que realiza assim sua viagem na mãe Roma que o acolheu. “Pois, além da dor de crescer, o homem precisa saber enfrentar a dilaceração das despedidas e caminhar com passo sereno em direção ao vasto mundo”. (Kezich, op. cit.:35). Porém La Dolce Vita é mais que uma viagem “interna” - é o instantâneo de uma sociedade perdida entre a noite e o dia em eternas madrugadas orgiásticas que, aparentemente, não tem redenção.

O crítico Walter da Silveira comparou Fellini a Goya que, “olhando o seu tempo o reteve como um triste retrato para sempre”. La Dolce Vita causou muita polêmica porque ali eram identificados traços de uma geração que possuia um desespero tão contemporâneo quanto o de Marcello. Um triste retrato para sempre, mas um retrato fiel em sua absoluta infidelidade pelo real. Até a Via Veneto teve que ser reconstruída, e, para Fellini, a do filme era a verdadeira Via Veneto.

La Dolce Vita fez com que muitos críticos reavaliassem a obra de Fellini e passassem a olhar com outros olhos seus filmes anteriores. Como diria Borges, “todo escritor cria seus próprios precursores”. Vários são os elementos que identificamos como uma constante no universo do diretor: as noites, os excessos, a presença constante da água - em forma de fonte, rio ou mar. Seus personagens ficaram tão típicos que o próprio Fellini brinca com isso em Intervista - pessoas vão procurá-lo porque se acham fellinianas.

É melhor do riso...

Fellini e Rabelais - o que pode existir em comum entre os dois? A carnavalização do mundo, transformar o real em risível - através do riso ambos reutilizam a cultura popular e trazem-nos um universo onde a separação entre vida e representação é uma linha muito tênue, às vezes, inexistente.

“Na verdade o carnaval ignora toda a distinção entre atores e espectadores”. (Bakhtin, 1987: 6). A ambiguidade é a marca do cinema felliniano, diretor e personagens acabam se misturando construindo juntos uma síntese entre cinema/real, o autor se despe e aparece em seus filmes que, por serem grandes mentiras, paradoxalmente conseguem capturar algo da realidade extra-tela. A grande ambiguidade que permeia os filmes de Fellini é entre o grotesco medieval (o que o aproxima de Rabelais) e o grotesco romântico.

Para Yuri Lotman o grande motor do cinema são as tensões[1]: tensão entre a narrativa verbal e icônica; entre o realismo e a criação de outra realidade. Em Fellini, além destas tensões “comuns”, encontro uma entre estes dois momentos do grotesco - e esta tensão está presente, mesmo apenas como potencial, movendo seus filmes.

Bakhtin consegue, via Rabelais, empreender uma viagem pela cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Assim, contextualizarei a obra de Fellini nesta passagem entre a festa medieval e o começo da ironia romântica. A festa medieval que buscava o riso. Fellini sempre quis ser comediante - “Eu gostava muito da função de enviado especial e sentia uma forte atração pelos atores cômicos, a quem considero benfeitores da humanidade. Fazer com que as pessoas riam sempre me pareceu a mais privilegiada das vocações, meio parecida com a dos santos”. (Fellini, 1986: 31).

A (s) Festa (s)

Não existem fábulas não cruentas. Todas as fábulas nascem das profundezas do sangue e da angústia... Somente a superfície é diferente... mas o núcleo, a profundidade da nostalgia é sempre a mesma.
Kafka

O riso felliniano não é alegre e descompromissado, carnavalesco, como o riso medieval. É forte a carga de fábula em seus filmes, uma fábula cruenta que é suavizada pela imensa ternura que ele tem por seus personagens. “O italiano, que parece um desesperançado à primeira vista, nunca nega a luz no final de seus filmes. Mesmo que seja apenas um facho num estúdio vazio (como em Entrevista)”. (Nogueira in Cañizal, 1993: 151). As festas fellinianas são permeadas pela angústia e pelo riso, a angústia de “câmara” e o riso das praças, dos loucos e funâmbulos.

No cinema de Fellini somos introduzidos num mundo estranho, não um outro mundo, mas o nosso mesmo que se nos apresenta de modo diverso. “ Na realidade, o grotesco, inclusive o romântico, oferece a possibilidade de um mundo totalmente diferente, de uma ordem mundial distinta, de uma outra estrutura da vida”. (Bakhtin, 1987: 42). Recriar o mundo e permitir a possibilidade de um retorno ao momento orgiástico inicial, a festa absoluta.

Traçar um paralelo entre as duas formas de grotesco que eivam toda a obra felliniana só nos é possível através da comparação com os momentos destacados por Bakhtin. A festa medieval que burlava as fronteiras entre classes também está presente em La Dolce Vita. Marcello é convidado para uma festa de aristocratas onde em certo momento não é mais possível dizer quem é quem. Todos se misturam numa fantasia sem limites que se desfaz quando o dia amanhece e o sino toca chamando todos para a missa[2] .

Na cena da orgia existe também uma tentativa de apagar as diferenças de classe. Marcello começa a ofender todos os participantes, xingando-os (uma atitude tipicamente medieval). Não existe aqui o gozo da festa e, sim, a descoberta de estarem todos juntos num só desespero: o vazio.

Ao sair da orgia Marcello e seus amigos correm para a praia. Lá eles encontram pescadores tirando do mar um ser estranho, morto e disforme. “O peixe-monstro, longe do acabamento e da perfeição das formas “clássicas”, vem expor seu “inacabamento”, suas protuberâncias, sua morte. Confundindo - se com a areia, ele não nega que seja tão antigo quanto a Terra. O peixe, símbolo cristão por excelência, aparece, deformado, morto. Ele também não traz respostas para as dúvidas e incertezas de Marcello”. (Nogueira, 1993:34). Por causa de cenas com esta Fellini foi acusado de ser incapaz de aderir a uma visão positiva.

O não gozo completo deste filme é uma característica do grotesco romântico, um “grotesco de câmara, uma espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência aguda do seu isolamento”. (Bakhtin, 1987:33). Em La Dolce Vita, fugindo da carnavalização do cotidiano, o diretor vai ao encontro de si mesmo através da ironia e de uma ponte de amargura. Mas nem neste momento ele nega a luz aos seus personagens (e ao mundo). O final aponta para uma provável redenção. Ela está bem ali, mas, nem sempre, é fácil agarrá-la.

La Dolce Vita traz as praças e o riso das ruas, mas cerca Marcello de Noites intermináveis, entre festas e pessoas tão perdidas quanto ele. Todos representam cenas, que são, ao mesmo tempo, parte de suas próprias vidas. Marcello segue representando seu carnaval de “câmara”, o seu isolamento é agudizado pela presença das mulheres que apenas passam por ele. Algumas querem ficar, mas nenhuma, de facto, basta. São personagens em seu teatro de solidão - ele, no final, não consegue ouvir a menina-anjo que o chama na praia. A redenção não consegue mais contaminá-lo.

“Uma qualidade importante do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores. O povo não se exclui do mundo em evolução. Também ele se sente incompleto; também ele renasce e se renova com a morte”. (Bakhtin, 1987: 10-11). Fellini participa da festa que ele promove na tela. Como poucos cineastas ele se permite desnudar e penetra no mundo que sempre em movimento e ebulição, engole a todos. Os que riem e o objeto do riso. Marcello (o Mastroianni e o da tela) é seu alter-ego, em La Dolce Vita ele não é um personagem passivo, é o narrador que costura toda a trama, que afinal, não poderá, de facto, atingi-lo.

Vários são os elementos do grotesco que podemos encontrar no espírito surrealista. A ambiguidade, a incompletude, o excesso. Um universo em processo, em mudança, num estágio constante de revolução - a revolução, que, segundo Breton, é a única capaz de criar luz. Os elementos presentes na obra de Fellini são facilmente detetados, por exemplo, na obra de Buñuel. Mas não de forma especular - as distorções do aragonês não são semelhantes as do italiano. Existem diferenças, que porém, não invalidam o diálogo.

Os mutilados de Buñuel estão presentes no peixe-monstro que jaz na areia da praia em La Dolce Vita. A blasfêmia é também a marca de um diretor sufocado pelo catolicismo espanhol. As festas em Buñuel são momentos de alteridade e de descoberta do absurdo da vida (vide a Santa Ceia de Viridiana). Temos um longo caminho a percorrer no universo dos dois diretores, mas acreditamos que o espírito surrealista que eiva sua obra é um elo indiscutível, e a presença do grotesco/carnavalização é mais uma prova de que a sensibilidade surrealista não foi traída por nenhum dos dois.

O teatro de câmara de Fellini acontece diante de nós, espectadores ávidos por imagens-signo que preencham o lugar de alguém, talvez do grande outro lacaniano, ou de todas as alteridades que nos parecem indecifráveis.

Guattari afirma que o cinema é o divã do pobre - “Pagamos um lugar no divã para nos fazermos invadir pela presença silenciosa de um outro, se possível alguém distinto, alguém que tenha um estatuto nitidamente superior ao nosso - e pagamos um lugar no cinema para nos fazermos invadir por uma qualquer pessoa, e para nos deixarmos levar numa qualquer aventura, durante encontros que, em princípio, não têm amanhã”. (1984:21). O cinema é o grande outro da contemporaneidade - ocupando um espaço na vida daqueles que se deixam invadir quando consegue instaurar a tensão entre os dois espaços tela/extra-tela. Alguns cineastas agudizam a ambiguidade deste outro que tentamos decifrar. Fellini é um deles.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M.1987. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento - o Contexto de François Rabelais. São Paulo, Hucitec.
CAÑIZAL, E. P. (ORG.). 1993. Um Jato na Contramão - Buñuel no México. São Paulo, Perspectiva.
ECO, U. 1989. Sobre os Espelhos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
FELLINI, F. 1986. Fellini - Entrevista Sobre Cinema. Rio de janeiro, Civilização Brasileira.
GUATTARI, F. et alii.1984. Psicanálise e Cinema. Lisboa, Relógio D’Água.
KEZICH, T.1992. Fellini. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
LOTMAN, Y. M.1979. Estética y Semiótica del Filme. Barcelona, Gustavo Gilli.
LYOTARD, J.-F.1994. Heidegger e os Judeus. Petrópolis, Vozes.
NOGUEIRA, M. 1993. Da Crítica de Cinema. São Paulo, PUC (Dissertação de Mestrado), mimeo.
SILVEIRA, W. 1966. Fronteiras do Cinema. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

Notas

[1] Y. Lotman ressalta em diversas passagens de seu livro Estética y Semiótica del Cine (1989: passim), que a tensão é o motor do cinema. Tensão entre a narrativa verbal e icônica, entre o realismo e a criação de outra realidade, entre o plano e extra-plano ... Fellini utiliza o tempo inteiro as tensões que servem como motor de seus filmes , e vão pontuando as passagens entre cenas e/ou sequências. A aurora é uma personificação de tensões, representando sempre uma transição.
[2] Fellini é também o cineasta das noites. Os noturnos fellinianos alimentaram críticas ao seu respeito até hoje. “Notemos ainda uma outra particularidade do grotesco romântico: ele tem predileção pela noite ( As Rondas Noturnas de Bonaventura, os Noturnos de Hoffman), é a obscuridade e não a luz que o caracteriza”. (Bakhtin, 1987:36). La Dolce Vita é um filme noturno. Marcello vive da e para a noite, seu contato com o dia nem sempre é feliz.