Acordei com o coração apertado no meio da noite, com medo da guerra. Fomos muitas esta noite, as mães que não dormimos e repetimos gestos iguais como no movimento de uma dança onde nos parecemos e reconhecemos. Levantei e fui tomar água e olhar o meu menino que dormia e meu coração ficou mais apertado, o meu e o delas também. É só um detalhe o que me separa das mães iraquianas esta noite, das mães americanas também, um detalhe e nada mais: um golpe de sorte. Sorte porque casualmente a guerra não é aqui, da maneira como é lá neste momento. Mas estamos todas despertas, alertas, tentando embalar o mundo nesta noite infindável e escura.
A qualquer momento as bombas vão começar a cair, a qualquer momento a poderosa máquina da guerra, um trambolho tecnológico e imenso, movido pelo ódio e a insensatez e que acorda e adormece como um monstro de muitas vidas, estará em movimento outra vez. Por isso estamos alertas. Acendo velas no meu oratório e me persigno junto com todas elas, no meio desta noite escura. Somos muitas e oramos. Estamos vestidas de preto e oramos. Somos as mães do mundo, as mães gregas, as mães de Guernica, as da Praça de Mayo, as japonesas, as colombianas, as judias, as bósnias, as salvadorenhas, as afegãs, as iraquianas, as brasileiras, as americanas também.
E os nossos filhos foram para a guerra. Os nossos meninos, promessas de amor e sonhos das nossas vidas: a semente, o fruto e a flor. Não há explicação que justifique perder a vida para uma morte insana, os nossos meninos ainda em flor oferecem suas vidas ao monstro devorador e a noite cai sobre nossas almas, numa condenação. Oramos, pranteamos o mundo e o desejo de morte de alguns. Nossas mãos fortes feitas para o amor estão aflitas, se contorcem, nossos olhos em pouco tempo estarão secos, de pedra, duros de incompreensão. Nosso pranto é um lamento, uma cantiga de ninar, um hino de amor à vida, de não à morte, à guerra, os meninos estão em perigo. Mas ninguém nos ouve. Somente nós, as mães do mundo, ouvimos um poderoso murmúrio subterrâneo que nos desperta e nos irmana nesta noite. Ouvimos o nosso pranto e nossa oração.
A história então se repete. É sempre a mesma. Uma mãe é despertada por um eficiente oficial do exército, num povoado deserto, semi-abandonado, na véspera da guerra, onde metade dos moradores locais já partiram para os campos de refugiados. O oficial é breve e tem pressa. Seu filho morreu ontem, numa manobra preparatória. A mulher, vestida de preto como nós, as mães do mundo e da guerra, pede para ver o menino, não pode acreditar, o oficial impaciente diz que é impossível, o corpo do menino explodiu pelos ares, mas traz enrolado num jornal os pertences do bravo soldado e parte apressado. A mãe, na porta da casa que tem de abandonar, abre o pacote e vê o par de sapatos do seu príncipe, do seu menino em flor, sapatos destruídos, rotos, furados, cheios de terra e sangue misturados. Cheira os sapatos, lambe, abraça junto ao corpo, ao colo, beija, lava os sapatos. Como se lavasse o corpo do seu menino, seus pés pequenos de ontem, os pés fortes de hoje, tira a terra misturada com o sangue seco e pensa em todos os gestos que lhe roubaram, limpar-lhe o rosto de olhos fechados, lavar-lhe o corpo destruído, curar-lhe as feridas. Acarinhá-lo, vestir-lhe roupas limpas, lembrar sua vida breve, honrar sua morte prematura. Beija os sapatos, enfia seu rosto de olhos secos no espaço côncavo entre os dois sapatos, um espaço vazio, e fica ali para sempre enquanto cai a escuridão da noite.
As bombas vão começar a cair, dizem, a qualquer momento. A mulher parte, vestida de preto, um ponto preto minúsculo numa multidão de mães perdidas mundo afora com as mãos vazias e os peitos secos. A nossa oração não pára, o pranto também não, levaram nossos meninos, assim como levaram os pais dos nossos meninos, e como levaram os avós dos nossos meninos um dia. O pranto e a reza atravessam o mundo e os nossos corações, os das mães do mundo e da guerra.
Que o saldo da guerra nunca foi a paz. O saldo da guerra é sempre a morte.