“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade”‒. Italo Calvino

Vivemos numa época em que um vale-tudo no campo das Artes promove uma autêntica dessacralização dos termos e dos usos, no bom e no mau sentido. No bom sentido, promovendo uma aproximação entre a arte e vida, permitindo que os lugares considerados do saber sejam convertidos em lugares do sabor, da possibilidade lúdica da criação artística que ultrapassa fronteiras diversas. No mau sentido, por promover uma deseducação do público e um crescente afastamento do mesmo em relação àquilo que é artístico. Arte Pública é um termo historicamente consagrado, com diversas manifestações que, ao longo do século XX e no século XXI, esteve ligado a um princípio que não pode ser esquecido: intervir no espaço urbano é uma atitude política. É um ato que afeta a comunidade envolvente e, como tal, deve pensar o seu papel e conhecer a sua função.

No início do século XX, o Dr. ATL (pseudónimo do pintor e escritor Gerardo Murillo) publicou um manifesto defendendo a necessidade de uma arte pública. Em Barcelona, alguns anos mais tarde, o artista mexicano David Alfaro Siqueiros fez apelo aos artistas da América proclamando a necessidade de se lançarem todos na tarefa de promover uma arte capaz de falar às multidões: “Pintaremos os muros das ruas e das paredes dos edifícios públicos, dos sindicatos, de todos os cantos onde se reúne gente que trabalha”. O muralismo mexicano é um dos grandes exemplos de Arte Pública com uma função político-social inegável, que buscou levar a arte ao público, que de outra maneira não poderia ser por ela atingido. Não só levar a arte para o público como transformar os muros das grandes cidades e painéis de edifícios em superfícies especulares onde a classe trabalhadora se revia. No contexto do seu nascimento, o muralismo mexicano refletia sobre três questões fundamentais: a questão do nacionalismo, a ideia de classes populares e os princípios revolucionários. O povo, sobretudo os autóctones, não estavam representados nas camadas do poder e não tinham sequer direito à representação da sua imagem e a difusão dos seus princípios estéticos. A arte retratava o mundo europeu, conforme regras europeias e afastava tudo aquilo que se mostrasse como um desvio destes princípios. Assim sendo, a proposta de Siqueiros é duplamente revolucionária – ele propunha que as identidades nacionais fossem resgatadas e que se refletisse na produção artística mexicana. Além disso, era no espaço público que esta batalha deveria ser travada, retirando do universo elitista da produção e circulação da arte as obras que tinham uma função político-social bastante definida: uma arte feita para o povo e sobre o povo.

Este movimento foi protagonizado por três grandes artistas: Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco. O ciclo de frescos pintados por Orozco na Escola Nacional Preparatória e os murais de Rivera no pátio do Ministério da Educação aparecem como ponto alto deste período artístico revolucionário, que tem início na década de 20 do século XX, e que se expande, a partir dos anos 30, além-fronteiras para países como Brasil, Estados Unidos e Peru. O muralismo consolidou-se como a arte representativa do período pós-revolucionário, seguindo “seu generoso anseio de servir a causa do homem: dos campesinos, dos trabalhadores, dos sobreviventes da dramática contenda da guerra civil, com um saldo de milhões de mortos” (1).

Seguindo os passos do muralismo mexicano, o artista norte-americano George Biddle propõe em 1933, ao então presidente Roosevelt, a criação de um projeto nacional para as artes. Surge aquilo que ficou conhecido com a Arte do New Deal, que originou dois tipos de apoio do governo aos artistas da época, promovendo, ao mesmo tempo, a criação de um acervo nacional e público da obra daqueles artistas. Através de dois projetos, o Public Works of Art Project e o Federal Art Program, 5.000 artistas, durante quase 10 anos, produziram cerca de 2500 frescos, 18 mil esculturas, 108 mil pinturas, 200 mil cópias de gravuras e 200 mil cartazes. Um crítico da época, Francis O’Connor, definiu a Arte do New Deal como “uma arte para milhões”. A ideia era precisamente esta: através da arte tentar promover o rejuvenescimento espiritual de que o país necessitava em tempo de crise.

Biddle acreditava que a arte poderia servir de base para a construção de um projeto social inclusivo e democrático. Acreditava no papel do Estado como patrocinador ou mecenas da arte. Numa entrevista concedida a Harlan Phillips para o Archive of American Art, em 1963, Biddle refere a sua experiência com os três grandes artistas mexicanos e o papel que o muralismo mexicano teve na arte do New Deal, influenciando toda uma geração de jovens artistas norte-americanos (2).

A relação entre arte pública e política nem sempre é explícita ou está enquadrada num programa ou movimento revolucionário. Durante o século XX a arte foi abandonando os lugares tradicionais de exibição e foi ampliando o seu alcance em busca de criar novas linguagens e de repensar o papel da arte na nossa cultura. Exemplo disto é o que aconteceu com a Land Art e suas diversas vertentes como a Environmental Art: o espaço deixa de ser um motivo e converte-se no suporte. Obras como a de Robert Smithson e Michael Heizer questionam a própria ideia de objeto/obra de arte e convidam o espectador a penetrar na obra para vivenciá-la plenamente. A natureza distante torna-se visível através das intervenções de artistas que provocam reações diversas no público e desestabilizam a ideia da obra de arte mercantilizável. O espaço abre-se para novas experiências, seja fora ou dentro dos centros urbanos. O limite entre arte-não arte, público-privado, real-representação torna-se cada vez mais diluído e permite aos artistas experimentarem novos formatos e proporem novas experiências/vivências.

A arte reclama novos critérios de validação e novos espaços, desafiando constantemente as classificações habituais. A partir da 2ª Guerra Mundial, as obras articulam cada vez mais novas e múltiplas linguagens e tentam dirigir a criação artística às coisas do mundo. Numa abordagem menos político-ideológica, mas não menos interessante, o argentino Lucio Fontana, escreve o seu Manifiesto Blanco em 1946, onde cria a teoria do espacialismo. Neste manifesto, Fontana propunha a colaboração estreita entre arte e ciência no desenvolvimento e na síntese de novas ideias e materiais. O desejo de Fontana, e de outros artistas que assinam também o manifesto, era o de projetar cores e formas num espaço real, utilizando técnicas como luz néon e a televisão, ao mesmo tempo que negava num espaço ilusório criado na pintura tradicional. Em 1947, o artista apresenta a obra inaugural do movimento ‒ uma sala pintada de preto ‒ designando-a Ambiente Espacial Negro, e reafirma as ideias do manifesto publicado no ano anterior com a divulgação do Manifesto Técnico do Espacialismo, que exalta a importância do espaço real, existente além da tela e da escultura, e o uso da ciência e da tecnologia na transformação plástica desse ambiente. A ideia chave de Fontana era invadir o espaço, extra-tela e extra-muros, para modificá-lo através da arte, provocando no público reações distintas e estimulando o nascimento de um novo olhar para o espaço circundante.

Assim, de diversas maneiras, a arte pública pode ser vista como uma arte fisicamente acessível, que modifica a paisagem, de modo permanente ou temporário. Seja através de técnicas tradicionais, como o Muralismo mexicano, ou da junção arte/tecnologia, proposta por Fontana, o essencial é que a proposta desta Arte, que invade os espaços fora dos tradicionais museus e galerias, é o de alterar a paisagem ordinária. Em alguns casos, promovendo a recuperação de espaços degradados e provocando um debate cívico.

O conceito de Arte Pública voltou a ganhar visibilidade a partir do início dos anos 70 do século XX e serviu para caracterizar um novo tipo de intervenção artística no espaço público que se distinguia do tradicional monumento comemorativo. Na passagem do século XIX para o século XX, artistas como Rodin, Brancusi e Picasso vão realizar obras que negam o conceito de monumentalidade da arte pública tradicional. O importante, para estes artistas, era a dessacralização do espaço tradicional de exibição da arte bem como a penetração no tecido urbano com obras que revelam um novo olhar diante do mundo. O espaço urbano vai, aos poucos, ser convertido num local por excelência da experimentação artística. Entre os anos 60 e 70 houve uma explosão de ideias que levou à invasão do espaço urbano, provocado pela necessidade de a arte, uma vez mais, afirmar-se como tal num mundo agora convertido em local de consumo.

A sociedade contemporânea vive num estado de psicastenia: perda dos limites espaciais. Este termo, utilizado por Celeste Olalquiaga, representa uma das muitas condições contemporâneas: “A psicastenia, definida como uma perturbação da relação entre o eu e o território em torno, é um estado em que o espaço definido pelas coordenadas do próprio organismo se confunde com o espaço representado” (3). Ou seja, o corpo do sujeito confunde-se com o ambiente e torna-se parte deste, perdendo, durante o processo, a sua condição de entidade própria. O processo é típico das culturas urbanas e já foi, de alguma maneira, retratado por Edgar Allan Poe no seu conto O Homem da Multidão, editado em 1840. No conto, Poe narra a história de um homem que se depara com um novo ser, desconhecido e não reconhecível, “o homem da multidão” – uma criatura que se confunde com o ambiente em que vive e, como uma espécie de camaleão, camufla a sua presença tornando-se invisível aos olhos mais desavisados. O conto de Poe mereceu a atenção de Baudelaire que, ao refletir sobre a ideia de Modernidade, usa a imagem de Poe para situar o novo homem que surgira no século XIX, após a Revolução Industrial e durante o processo de metropolização das grandes capitais europeias.

O espaço urbano, e a condição de quem nele vive, alteram-se profundamente no século XIX e esta mudança vai tornar-se cada vez mais visível no decorrer do século XX. Há uma crescente perturbação da relação entre o eu e o território que nos rodeia. O nosso organismo, dificilmente, consegue traçar as coordenadas que dividem o espaço da experiência real com o da experiência virtual. Espaço e representação se (con)fundem. Isto porque, além da relação constante com as novas teletecnologias, que comprimem e alteram a nossa relação espácio-temporal, as cidades há muito que se converteram em galerias a céu aberto, onde anúncios diversos, grafites, fios, luzes, cartazes, montras e muitos outros elementos, promovem uma saturação sensorial onde o corpo, para defender-se, metamorfoseia-se e confunde-se com o espaço que palmilha. Por isto a questão do espaço tem sido uma constante entre os artistas contemporâneos. É necessário promover uma nova cartografia, recriar este espaço saturado e apropriar-se dele, traçando necessárias fronteiras para que o olhar volte, novamente, a ver. Para que a Arte seja, novamente, um gesto de intervenção e provocação.

Dialogue Boxes on Street Windows

Na terceira edição do programa Art Allgarve, em 2009, foi pela primeira vez integrada uma componente regional, para a qual contribuíram docentes e alunos de Artes Visuais da UAlg – os primeiros enquanto curadores (Alexandre Barata/Xana e Mirian Tavares), os segundos enquanto artistas. O projeto Dialogue Boxes on Street Windows, composto por diversas intervenções produzidas por quatro artistas de renome e dez estudantes da UAlg, esteve nas ruas do centro histórico de Faro durante três meses, desde Junho até ao final de Setembro. Foi, comprovadamente, a exposição mais vista do Algarve já que as pessoas circulavam pelas ruas da baixa e do centro histórico de Faro conseguiram fruir, mesmo não intencionalmente, da arte que estava ali, ao lado delas. O projeto teve ainda uma vertente pedagógica pois tentou-se mostrar aos transeuntes, através do contraste entre as obras e o seu em torno, que nem tudo que está exposto na via pública é arte.

Dialogue Boxes on Street Windows visava, por um lado, recuperar a ideia inicial da Arte Pública como um processo de invasão do espaço urbano, promovendo a sua reconfiguração e, por outro, aproximar a arte do público que, em geral, não está habituado a ir a locais de exposição convencionais como galerias, centros de arte e museus. Nestas intervenções a arte afirma-se como um espaço de promoção do diálogo entre as pessoas, envolvendo-as e questionando-as. Foi um convite ao olhar crítico, à participação ativa no processo de construção de uma cidade de cultura e, obviamente, de uma cidade voltada para a cultura.

Há, com frequência, espaços que são esquecidos, ruas por onde não circulam pessoas, lugares que se tornam quase invisíveis, tão invisíveis que ninguém repara nas suas casas e fachadas, como se houvesse uma cidade oculta sob aquela mais solar. Assim, neste contexto, a ideia fundamental do projeto Dialogue Boxes on Street Windows foi o de criar uma cartografia alternativa, um percurso diverso que obrigasse as pessoas a olharem à cidade; (re)descobrirem cantos e recantos, deixarem-se perder em ruas transversais, em ruas por onde não costumam andar mas em que há muito que ver/viver. Se este património continuar escondido, deixará de fazer sentido no mapa da cidade e, perdendo assim a sua função, poderá ser destruído, não restando nem a sua memória: apenas um espaço vazio.

Os artistas e as obras

Os artistas escolhidos têm percursos muito diferentes mas possuem, como característica comum, um lado profundamente instigante e experimental em tudo o que fazem. António Costa Pinheiro nasceu em Moura em 1932 e muito cedo percebeu que a situação de repressão no país não o permitiria realizar grandes experimentações artísticas e culturais, assim sendo, emigrou à procura de um espaço para expor novas ideias.

A importância da sua obra, iniciada em finais da década de 50 e pouco depois integrada na ação do Grupo KWY, fez dele um dos mais significativos artistas da segunda metade do século XX em Portugal.

Para Dialogue Boxes on Street Windows, Costa Pinheiro recuperou parte da sua obra realizada entre 1967 e 1975, Citymobil – Arte-Projeto, que está integrada na fase conceptual do artista. Neste trabalho ele utilizou objetos que se organizam em narrativas dentro de uma cidade que é, permanentemente, transformada pelos seus habitantes. Ideia que se encaixou perfeitamente na proposta curatorial deste projeto e que continua a ser inovadora e instigante, mesmo após tantos anos.

Ana Vidigal nasceu em Lisboa em 1960, tendo estudado pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Entre 1985 e 1987 foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi pintora residente, de 1998 a 1999, no Museu de Arte Contemporânea na Fortaleza de S. Tiago, no Funchal. Fez inúmeras exposições individuais e coletivas, entre as quais se destacam: I Exposição Ibérica de Arte Moderna, em Campo Maior e Cáceres; Feminine Dialogue, para a UNESCO em Paris; Portuguese Contemporary Artists, no World Trade Center de Nova Iorque; Portugal Hoy, no Centro Cultural Conde Duque em Madrid; Pintoras Portuguesas do Século XX, na Galeria de Exposições do Leal Senado em Macau e Quando o Mundo Nos Cai em Cima, no Centro Cultural de Belém. Em 1995, Ana Vidigal foi convidada pelo Metro de Lisboa a realizar um painel de azulejos para a estação de Alvalade, tendo, sete anos mais tarde, executado vários painéis de azulejo para a estação de Alfornelos.

No projeto Dialogue Boxes on Street Windows Ana Vidigal decidiu explorar o espaço público através de um olhar, ao mesmo tempo, perverso e infantil, ao utilizar figuras que parecem saídas de ilustrações dos anos 50. Os painéis da artista colocaram o público na incómoda posição de voyeur, que participa, voluntariamente ou não, de uma série de jogos propostos por duas meninas, especulares, mas de tamanhos diferentes ‒ o que marca uma relação de poder e submissão. As janelas abrem-se de par em par e deixam que o público invada, completamente, o espaço privado, e sagrado, da inocência infantil.

Susanne Themlitz nasceu em Lisboa em 1968. Vive em Lisboa e Colónia. Em 1993, concluiu os estudos de Desenho e Escultura no Ar.Co, em Lisboa, tendo passado o ano de 1992 no Royal College of Art, em Londres. Em 1995, concluiu um mestrado na Kunstakademia de Düsseldorf. O seu trabalho, nas diversas técnicas e materiais que utiliza, é caracterizado pela presença de figuras assustadas, mutantes e insólitas, numa condição visivelmente marginal. O carácter onírico é acentuado pela ideia de que as figuras e paisagens indiciadas em seus trabalhos estão fora do tempo, como se habitassem um espaço mítico.

Neste projeto, Susanne Themlitz desenvolveu um trabalho inquietante, onde um edifício deixa de ter fronteiras entre o espaço de fora e o espaço de dentro – ambos passam a conviver, lado a lado, numa superfície externa. Não é preciso espreitar para dentro das janelas, a casa, como que esventrada, é exposta ao olhar de todos. Os elementos, que convivem na superfície do edifício, estão também eles fora do tempo e do espaço apropriados, remetendo-nos para o universo onírico da artista.

Manuel Batista nasceu em Faro em 1936. Em 1957, matricula-se em Arquitetura, curso que abandona para se dedicar exclusivamente à pintura. Em 1962, conclui o Curso Complementar de Pintura na ESBAL. Entre 1962 e 1963, está em Paris como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e, em 1968, em Ravena, como bolseiro da Alta Cultura. Foi assistente de Pintura na ESBAL entre 1964 e 1972. A partir de 1977, desloca-se regularmente a Lippstadt e Schmallenberg, na Alemanha, onde trabalha e realiza tapeçarias para a fábrica Folke. Vive e trabalha em Faro e em Lisboa.

O seu trabalho, que sofre modificações ao longo dos anos, pode ser caracterizado pela ideia de desconstrução e recomposição das superfícies. Há um cruzamento entre uma paisagem apenas sugerida e uma forte tendência ornamental. As cores são utilizadas no intuito de valorizar o seu brilho e transmitir um tom alegre e despreocupado.

Manuel Baptista trabalhou a dualidade entre as superfícies, a ideia de bidimensionalidade e de tridimensionalidade que se cruzam e se complementam, criando um efeito ornamental e decorativo, sem deixar de ser provocador. Uma provocação que evoca a Pop Art, recheada de ironia e bom humor, tornando o espaço público atraente e vivo, buscando atrair também o olhar do público que passa e que já não vê o espaço que o circunda.

As obras dos jovens artistas

Andreia Filipe, Alexandre Lima, Guilherme Gonçalves, Gustavo de Jesus, Joana Bárbara, Mara Barth, Paulo Quaresma, Tatiana Barreiros, Tiago Custódio e Úrsula Mestre foram os dez jovens artistas e estudantes recém-licenciados do curso de Artes Visuais da UAlg que invadiram o centro histórico de Faro, interpelando os transeuntes com várias abordagens. Os seus trabalhos seguiram caminhos muito diversos, desde a utilização de uma linguagem de banda desenhada, onde as personagens espreitam das janelas das casas para a rua que as envolve, até à presença de noivas suicidas, enquadradas num espaço real que se converte em espaço cénico. As técnicas utilizadas foram as mais variadas, passando por pinturas realizadas diretamente sobre a superfície das casas até ao trabalho realizado sobre materiais, como telas e madeiras, e posteriormente colocado nas fachadas.

Além dos trabalhos realizados nas fachadas de algumas casas do percurso, estiveram ainda expostas peças tridimensionais que ocuparam o passeio e os largos e que abrigaram, em muitos casos, performances dos alunos/artistas, que tiveram lugar ao longo do Verão, aos sábados à noite, dando assim uma dimensão ainda mais dinâmica e intensa à relação da arte com o espaço público. Foi o caso, por exemplo, da obra de Úrsula Mestre, com a instalação performativa Saia que gritas, que abordava as questões de género no século XXI através de três peças ‒ três saias das quais três mulheres se tentam libertar ‒, e da obra de Paulo Quaresma, que no contexto do projeto O meu abrigo é o meu templo encarnou a personagem de um sem-abrigo e criou uma casa de papelão, que levava às costas e montava em vários espaços da cidade.

O projeto, que esteve visível por três meses, entre Julho e Setembro de 2009, proporcionou aos habitantes da cidade e aos que a visitaram no período, uma experiência sensorial única que, deveria ser repetida mais vezes. Este poderia ser um trabalho mais continuado para que Faro, e outras cidades, pudessem sentir como a arte é capaz de transformar o espaço que a rodeia e criar novos itinerários dentro da mesma cidade.

Este projeto proporcionou ainda um momento único de aprendizagem para os alunos da licenciatura em Artes Visuais da UAlg bem como para os recém-formados que participaram na exposição enquanto artistas, pois aprenderam a trabalhar em condições complicadas, em superfícies inovadoras e a criar algo para uma exposição site specific, o que não é uma tarefa fácil.

Tentou-se, efetivamente, provocar um diálogo entre a cidade e as pessoas que nela habitam ou que por ela passam, todos os dias e quase já nem a veem. A cidade torna-se invisível pelo cansaço do olhar que vê sempre o mesmo e que acaba, por conseguinte, deixando de ver. Mesmo que a política de uma forma mais explícita não estivesse presente em nenhuma das obras, a atitude do projeto foi uma atitude profundamente politizada, provocando uma ligação entre a Arte Contemporânea, muitas vezes tão distante do público em geral e a cidade, intervindo de maneira a evitar os lugares-comuns que habitualmente povoam as ruas e criando uma proposta instigante para que as ruas da baixa de Faro, muitas delas quase desertas, pudessem ser novamente repovoadas e reabilitadas.

Notas
(1) Arenal de Siqueiros, Angélica, Vida y obra de David Alfaro Siqueiros, México, FCE, 1975, pp. 8-9.
(2) Oral history with George Biddle
(3) Olalquiaga, Celeste, Megalópolis. Sensibilidades Culturais Contemporâneas, São Paulo, Nobel, 1998, p. 24.