Este texto começou a ser escrito numa tarde chuvosa do dia 05/01/2013. Repare o leitor na “banalidade” do que foi escrito nesta primeira frase. Lemos “05/01/2013” e pensamos imediatamente num ponto no tempo altamente localizado e referenciado, pensamos no mês de Janeiro, no ano em causa, enquadramos a data com acontecimentos de que nos lembramos, etc. Esta data, como tudo o resto que envolve numerais é escrita utilizando algo que conhecemos bem: o sistema decimal. É algo que conhecemos bem e damos quase como inevitável. O acto de escrever números é algo simples como comer, respirar, etc. As pessoas escrevem datas, códigos de multibanco, idades dos filhos sem realizar a enorme sofisticação do sistema que usam para escrever esses mesmos números.

O matemático americano Steven Strogatz, começa o seu interessantíssimo livro The Joy of X, abordando um sketch da série infantil Rua Sésamo ‒ “123 vamos contar outra vez”. Argumentando que esse episódio constituí a mais clara e divertida introdução aos números que conhece, Strogatz acaba por abordar de uma forma muito interessante a essência do nosso sistema e a forma como este é consideravelmente mais abstracto do que outras formas mais concretas e esquemáticas. Humphrey, uma criatura cor-de-rosa, gere o turno do almoço no hotel Furry Arms. Num momento em que atende uma chamada de um quarto com pinguins, recebe um curioso pedido: “Peixe, peixe, peixe, peixe, peixe, peixe”. Para o ajudar, Egas, um ser mais evoluído, chama a atenção para a utilização de um sistema de numerais. Diz com propriedade que “6 peixes” teria sido um pedido muito mais simples. Em seguida, segue-se um diálogo sobre a temática. As crianças telespectadoras têm nessa altura uma oportunidade de aprender a contar os respectivos símbolos.

A generalidade das pessoas pode pensar que se trata “apenas” de um assunto de crianças em idade pré escolar. Mas isso é erróneo; recuemos um pouco na história humana. Há 17300 anos, a famosa gruta de Lascaux em França era um local que concentrava o melhor que a humanidade fazia tanto a nível artístico como a nível científico. Para melhor perceber a ideia, imagine o leitor que tinha na parede da sua casa lindas pinturas de Picasso lado a lado com as mais avançadas fórmulas matemáticas.

A beleza do veado fala por si, mas o que são as treze bolinhas seguidas de um quadrado vazio? A resposta é comum em objetos arqueológicos; catorze é sensivelmente metade de um ciclo lunar (treze bolinhas juntamente com o quadrado vazio simbolizando a Lua Nova). Este tipo de informação era obviamente ciência de ponta há mais de quinze mil anos. Aproveitemos esta imagem para falar da ordem das dezenas (em bom rigor, podia dizer-se ordem numérica, na medida em que o fenómeno que se passa na ordem das dezenas, passa-se também na das centenas, dos milhares, dos décimos e nas outras todas). Repare o leitor como somos muito mais sofisticados hoje em dia; em vez de desenharmos 13 bolinhas escrevemos um 1 e um 3 em que 1 representa uma dezena em vez de uma unidade. Esta sofisticada notação numérica, objecto da conversa do Egas, e que utilizamos actualmente não apareceu de um dia para o outro. Ao contrário, demorou muito à humanidade e houve períodos em que vários povos utilizavam em simultâneos sistemas de numeração muito diferentes. O importante conceito moderno de ordem numérica é muito subtil com enorme influência na forma como fazemos cálculos matemáticos e como descrevemos quantidades.

Quando escrevemos o numeral relativo a treze, ou seja 13, estamos na realidade a utilizar uma numeração mista. Isso acontece porque o nosso sistema de numeração é posicional e os símbolos valem conforme a posição que ocupam. Neste caso, em relação a 13, 1 vale uma dezena e 3 vale três unidades. Treze, na sua escrita matemática atual, traduz a organização uma dezena mais três unidades; dez unidades numa ordem numérica são alvo de uma composição para uma unidade da ordem seguinte. Dez é escolha humana (relacionada com o facto de termos dez dedos nas mãos) e é por isso que o nosso sistema se diz decimal.

Da mesma maneira que a convergência para a notação posicional foi historicamente lenta e não fácil, para uma criança de 5 anos este conceito é muitíssimo difícil. Se experimentar dizer que o 1 do 13 vale dez, isso não significará nada para a criança; ela vê um 1… Para tentar evitar o problema, o educador tem de ilustrar; tem de esquematizar.

Além do mais, ainda hoje, à escala mundial, temos também um problema linguístico. Em português, as palavras onze, doze, treze, catorze, quinze, vinte, etc., não significam nada. A palavra dezasseis já traduz a ideia dez e seis. Mas temos muitas designações que não significam nada… Em inglês, também há esse problema. Por exemplo, as palavras eleven ou twelve não correspondem à usual notação matemática. Se usarmos o Google tradutor para ver o que se passa em chinês simplificado (caso não saibamos chinês!) constatamos um facto muito interessante:

1 一 Yī
2 二 Èr
3 三 Sān
4 四 Sì
5 五 Wǔ
6 六 Liù
7 七 Qī
8 八 Bā
9 九 Jiǔ
10 十 Shí
11 十一 Shíyī
12 十二 Shí'èr
13十三 Shísān
14 十四 Shísì
(…)
20 二十 Èrshí
21 二十一 Èrshíyī
(…)
75 七十五 Qīshíwǔ

Em chinês, a fala e a escrita correspondem na perfeição aos numerais! Um chinês fala de 14 como sendo dez e quatro ou de 75 como sete dez e cinco. Como na língua oriental a correspondência está explícita na língua materna, as crianças têm mais facilidade com o conceito de ordem numérica. No interessantíssimo livro The Number Sense (1997), de Stanislas Dehaene, o leitor pode ler mais sobre a análise científica e consequências deste facto singelo. Outros interessantes estudos tratam comparações entre vários países. Queremos com isto tudo dizer que na escrita dos numerais usamos um esquema posicional consideravelmente mais sofisticado e mais prático do que o que vemos na gruta de Lascaux. Além disso, essa escrita está uniformizada no mundo. Essa notação posicional baseada em dez símbolos não apareceu logo na história humana, tendo escapado a um grande número de civilizações sofisticadas e avançadas (como a egípcia, romana, grega, etc.). Em relação à língua ainda há um problema adicional; mesmo modernamente, não temos uma uniformização e isso tem alguns reflexos nas aprendizagens nos diferentes locais do mundo. Em particular, no que diz respeito ao caso português, os educadores devem estar bastante atentos a este facto. Queremos com isto dizer, em jeito de síntese, que não devemos encarar o assunto como “banal” e quase automático para crianças de tenra idade. Não é. Há um grande número de actividades testadas muito adequadas para a abordagem do sistema posicional junto de crianças pequenas.