Numa das suas exegeses especulativas sobre a natureza do mundo e do ser, Platão afirma, no monólogo de Timeu, que “será preciso, de início, distinguir o seguinte. Em que consiste o que sempre existiu e nunca teve princípio? E em que consiste o que devém e nunca é? O primeiro é apreendido pelo entendimento com a ajuda da razão (λόγου), por ser sempre igual a si mesmo, enquanto o outro o é pela opinião (δόξῃ) secundada pela sensação (αἰσθήσεως), carecente de razão, porque a todo o instante nasce e perece, sem nunca ser verdadeiramente.”1 Ao traçar a distinção entre tempo e eternidade, Platão concebe o primeiro como um reflexo imperfeito do mundo das ideias, um sopro efémero na grande ordem do cosmos. Ilusório por natureza, não possui um princípio autêntico nem um desfecho definitivo, mas uma fluidez incessante entre estados de ser, entre aquilo que perdura e aquilo que se extingue.
A sua travessia é registo de passagem em The enigma of arrival, a nova exposição de Isabel Cordovil na Galeria Pedro Cera. Aqui, as marcas da transitoriedade instalam-se nos interstícios de um tempo que é mero reflexo dos contornos inevitáveis de um eterno retorno, um espaço onde o momento permanece, enclausurado entre a partida e a chegada.
Envolto em estados volantes de transgressão, este circuito mergulha no precipício da perpetuidade, organizando-se em ciclos e sequências numéricas que espelham a cadeia inteligível das ideias. Num local onde o tempo perde a medida, o ritmo é pautado pelo som solene de uma caixa de música, cujo eco traça os contornos de um instante que se esvai. Diferente da imagem, que pode ser imobilizada e repetida, a sonoridade revela o tempo na sua condição mais efémera, daquilo que ressoa a caminho do silêncio. A melodia calorosa de uma cantiga subalterna reverbera num registo de marginalidade, guardando em si o esquecimento de Joana Benedita de Faria Pinho, autora e cúmplice da consciência aguda da deslembrança, compositora romântica que seguiu presa no seu estatuto diminuído do feminino, sem descendência que prolongasse a memória viva do seu trabalho. Como astro que rege a cadência da transição, a sua harmonia tangente dita o compasso para as leis deste microcosmo, em durações discordantes que circunscrevem uma ordem temporal distinta da prescrição natural. Emergindo da escuridão, este objeto de ambiguidade temporal aguarda no topo de uma travessia sem resolução, onde o som desvanece, distorcido, até ao clímax de um dia que se estingue – no limiar incessante de um amanhã que não tarda em chegar, para mais tarde se repetir, ininterruptamente.
Na physis (Φύσις), a realidade perene de onde tudo brota e para onde tudo retorna, o tempo revela-se apenas na aparência. Sem atributos que o ancorem ao mundo das ideias substanciais, dissolve-se na ilusão do seu próprio fluxo. Mas se, no pensamento platónico, o tempo é apenas um reflexo virtual do eterno, na experiência do vivido revela-se como duração imprevisível, atravessado por ruturas e desvios. O espaço que o tempo ocupa ganha forma somente na sua contagem; existe nos ciclos, nas repetições, e nos standards da medida. Habita, chega e desvanece no relato da sua passagem, nas cartas que permanecem por abrir, na cama desfeita de uma juventude que transita, na fixação daquilo que sobrevive como espectro. Partida e regresso, duas faces do mesmo enigma de transição, tornam-se evidentes no seu relato autodeclarado, nas estruturas submissas que se ajustam à tentativa de apreender o efémero. Nesta clepsidra incessante que guia a fantasia de tornar palpável o dissimulado, a artificialidade carrega as marcas de uma obsolescência incontrolável e silenciosa, sucedendo-se nos gestos que se acumulam sem deixar vestígio.
O corpo, como espaço sensível, participa deste processo de desintegração, como marca da presença que se confunde com o iminente apagamento, como um símbolo de atrito que elenca a certeza do fim, na impossibilidade de apreender a sua chegada. É na sua presença, no seu estatuto igualmente determinado por unidades de medida, que a fragilidade e a pausa captam as fricções de um tempo que corre incessante. Como exoesqueleto que suporta e transmite a experiência do perecível, o peso da continuidade tangível estende a uma estrutura fabricada de refúgio, um abrigo que oferece a possibilidade de habitar o intervalo, de extrair significado daquilo que, como o som e a sombra, está sempre a escapar.
Nos padrões que regulam o ser e o mundo, e que permitem que dele se faça sentido, o tempo permanece enquanto recetáculo vazio, moldado por unidades abstratas e transversais. Existe, independentemente daquilo que nele exista, sem começo, sem fim. Mas perdura, perpetuamente, enquanto registo da passagem, percetível no mundo das formas mediante mecanismos pautados no ritmo (ῥυθμός), regular, no circuito, no modelo, no enigma da aparência entre o que começa e termina. The enigma of arrival inscreve-se neste tempo suspenso, onde a passagem se torna somente visível nos vestígios que resistem à dissolução. Entre a partida e o retorno, entre o que se esgota e o que persiste, os trabalhos de Isabel Cordovil inauguram um universo de hesitação—um lugar onde o tempo se mede e pressente. Porque no fim, perante a fragilidade dos gestos e na ressonância dos contornos, subsiste a interrogação sobre aquilo que, mesmo no limite do esquecimento, regressa continuamente.
Notas
1 Tim. 27D-28A. Translated by R.G. Bury, Cambridge MA: Harvard UP, 1929.