Chego às suas margens e me pergunto: Iara e Oxum ainda por aqui vivem? Difícil de acreditar olhando aquele ambiente hostil! O rio, apesar de já menos fétido, está longe de ser convidativo a um banho, muito menos uma morada, ainda que seja possível nos depararmos com as capivaras, suas maiores habitantes, nadando ou caminhando em seu entorno. O mesmo já não se pode dizer da esparsa presença dos patos, garças e outras aves pelo rio. Aliás, confesso que nem entendo o que ali encontram. Já olhei repetidas vezes para o leito do rio e não vejo peixes, talvez em função da sua forte coloração, às vezes verde noutras escuro.

Tento imaginar como seria na época dos primeiros habitantes destas terras. O rio sinuoso cercado de palmeiras jerivás, o Rio Jurubatuba. Possivelmente se banhavam, pescavam e recolhiam os frutos das palmeiras. Quem sabe a Iara vivia próximo onde atualmente se encontra a Usina Elevatória de Traição? Tenho uma sensação de que aquele trecho seria uma leve corredeira. Mais tarde, algum africano também ali teria encontrado Oxum, mas possivelmente o rio já se chamava Pinheiros, nome dado pelos jesuítas em função da abundância das araucárias.

A cidade foi crescendo, os rios se transformando em recipientes de dejetos humanos. Os riachos, fechados por concreto ou asfalto, oficializados em canais de esgoto. Os rios maiores se transformando num grande esgoto a céu aberto. As margens do outrora Jurubatuba foram gradativamente comprimidas, vegetação dizimada, passando a abrigar pistas para veículos, trilhos e estações de trens, torres e subestações de eletricidade, ciclovias, trilhas etc.

O curso do Pinheiros foi enlouquecido para alimentar a Usina Hidrelétrica Henry Borden, ora seguindo para o Rio Tietê, ora para Represa Billings. Atualmente, devido à poluição, segue apenas para esta última em momentos de chuvas intensas, como forma de mitigar problemas de alagamentos.

Durante anos resisti a caminhar por suas margens. Alguns amigos ciclistas me indicavam que era um bom lugar para pedalar, entretanto, por questões de parâmetros, parecia difícil acreditar. Afinal, como diria Caetano, “E quem vem de outro sonho feliz de cidade...” (Sampa) irá imediatamente se imaginar pedalando pela orla de Salvador ou do Rio de Janeiro e concluir que pedalar pela Marginal Pinheiros, com certeza, não é interessante, pois tudo ali, visto de fora, parece bárbaro; o trânsito, a fumaça, o barulho, o fedor.

Há umas duas décadas a cidade tem despertado para o problema da excessiva poluição dos seus rios e tem feito algum esforço de descontaminação, com tratamento de parte dos dejetos, limpeza, desassoreamento do rio e plantio de alguma mata ciliar, em conjunto com ações de conscientização das pessoas sobre a importância desses espaços. Que ironia! Após décadas de poluição, o homem agora corre contra a ignorância e o tempo para despoluir os rios.

Um dia resolveram distribuir algumas esculturas, praças, pontes e píeres flutuantes e contêineres comerciais nas margens do Rio Pinheiros, entre a Ponte João Dias e a Usina de Traição, batizando-a de Parque Linear algum político. A inauguração foi anunciada como primeira etapa de um projeto superambicioso, que também inclui (mais uma vez!) a despoluição do rio. Atraídos por uma dessas pontes flutuantes, minha esposa e eu entramos para verificar. Pronto! Fomos fisgados!

Após estas novidades, percebo um movimento maior de pessoas neste trecho das margens do rio. Ademais dos ciclistas “profissionais” que já frequentavam o espaço, agora vemos mais ciclistas amadores e pedestres disputando o espaço, ao menos, nos finais de semana. Eu mesmo adotei um certo hábito domingueiro de pedalar às suas margens, com ou sem a família. Descobri que apesar da cidade ruidosa lá fora, as margens do rio tentam sobreviver como um lugar aprazível, a natureza tenta persistir e quase esquecemos dos carros que circulam ao lado.

Não obstante (dependendo do dia) esteja menos fedido, o rio ainda me parece bem sujo. Às vezes se assemelha a um enorme musgo verde borbulhante. Se tiver chovido há poucas horas, encontraremos mais lixo flutuante, normalmente plásticos. A vegetação do entorno é pobre, irregular e disputa espaço com as torres e cabos de energia elétrica. Volto a imaginar o quão deslumbrante seria a visão da flora natural disfrutada pelos primeiros moradores daqui. A atual é errante, lhe faltam naturalidade ou projeto paisagístico que lhe dê amplitude.

Lembro de outra canção do Caetano “...O horror de um progresso vazio...” (Purificar o Subaé) Normalmente, pedalamos entre a Ponte Laguna e a Ponte Cidade Jardim. Começando na margem entre o rio e as mil pistas ao lado do Morumbi, indo até o Parque do Povo na margem oposta. Diria que é o trecho mais amador do circuito. O trecho após o Parque do Povo sentido Parque Vila Lobos se torna mais “profissional”, com ciclistas apetrechados pedalando numa velocidade mais acentuada. Creio que também se dá a partir da Ponte João Dias em direção Interlagos.

Neste percurso, constatamos que mesmo numa das partes mais ricas da cidade mais rica do país, além do problema do saneamento, também não conseguimos resolver os maus hábitos das pessoas, a sua falta de educação ou desdém com o coletivo. Nas entradas das pontes flutuantes há a indicação de que não é permitido que os ciclistas as atravessem pedalando. Existe a solicitação para que atravessem caminhando empurrando suas bicicletas. Difícil crer que ciclistas com bicicletas tão caras e tão bem-vestidos sejam analfabetos!

Observamos edifícios que já estavam às suas margens quando nos mudamos para São Paulo e outros que vimos surgir depois, uns bonitos outros nem tanto. O trem passa com seu tilintar de tempos em tempos. Próximo ao estranho Castelo Cidade Jardim percebo uma placa indicando que há alces (ou outro animal com chifres) nas margens do rio. Até hoje não encontrei. Imagino se talvez as dóceis capivaras os tenham expulsados, se a placa seja fruto de uma piada ou se apenas ignoro o que significa. Quem sabe seja um padrão internacional para designar que há animais!?

Próximo a Ponte Estaiada há mais duas sínteses da nossa existência. Do outro lado da margem, em meio a ponte vemos de longe uma enorme bandeira do Brasil, completamente rota (há muito tempo!). Reflito sobre o que será recuperado primeiro, o rio ou a bandeira? Mas, por fim, prefiro me agarrar ao nosso bom humor, quando olho para o grafite no poste que tem a ponte estaiada como pano de fundo retratando a imagem de um bom prato de espaguete espetado por um garfo por um homem. Nele está escrito: Ponte Macarrão!

No verão 2023/2024 uma marca famosa de cerveja instalou um bar flutuante próximo a Usina de Traição. Uma tremenda e concorrida novidade! Precisava-se fazer reserva com alguma antecedência para conseguir frequentar o point provisório. Não me pareceu muito atraente tomar cerveja e comer algo sobre um rio que, bem, já expliquei... Entretanto, aceitei a novidade como mais uma forma de conscientizar os moradores a frequentarem as suas margens, sobre a importância da despoluição e o estabelecimento de uma relação mais fraterna com o rio.

Ao longo deste percurso me insiro no rol dos fotógrafos amadores e saio tirando fotos do conjunto que nos cerca ou dos pequenos detalhes encontrados. O ponto preferido para fotos pela maioria dos frequentadores costuma ser a Ponte Estaiada, que dispõe de um píer flutuante estratégico em sua frente, excelente para boas fotografias e selfies.

Devaneio sobre o futuro, imaginando um rio mais limpo, com mais fauna, um entorno mais bem arborizado com quiosques e bancos distribuídos pelo percurso. Devaneio sobre a possibilidade das antigas pontes do rio, atualmente relegadas a condição de ruínas, se transformarem em lugares de convivência com bares, restaurantes, alguns arbustos, mesas, cadeiras... um bom mirante para apreciar um possível entorno recuperado e, óbvio, os prédios ao redor.

Sempre finalizo a minha pedalada sem concluir se Iara e Oxum ainda por ali vivem. Meus pensamentos seguem dúbios. Ora concluo que, considerando a exigência dos deuses, seria impossível que elas aceitassem viver naquele ambiente. Ora concluo, que talvez sigam ali lutando, na tentativa que um dia o rio volte a ser limpo e abrigue mais vidas. Talvez a nossa reutilização das margens de forma mais branda possa ser um bom sinal!

Do rio morto ao recuperado? O tempo dirá!