Para quem não sabe, o futebol é um fenômeno cultural brasileiro. Além disso, essa prática esportiva pode ser observada e estudada a partir do método científico. É possível analisar o esporte das quatro linhas sob a perspectiva da sociologia, arte, geografia, engenharia, comunicação, física, psicologia, gastronomia, medicina, farmácia e por aí vai...

Um subtema analisado pela academia são as torcidas e seu cotidiano. A arquibancada é vista como reflexo das disputas sociais. Brigas nas arquibancadas, as diversas torcidas organizadas, músicas, cantos, faixas, protestos de torcedores, bandeiras são frutos de embates ideológicos, econômicos, políticos, memorialísticos e históricos. A rotina dos torcedores nos estádios e no seu entorno pode ser vista como performances. Esse comportamento dentro das arenas reflete o que acontece fora desses ambientes. Por exemplo, o advento das redes sociais como o Instagram e o TikTok levou jogadores e torcedores a adaptarem comemorações na hora dos gols com danças e brincadeiras dessas redes.

Outra situação comum é a apropriação de obras nacionais e internacionais de diferentes gêneros musicais para a criação de cantos utilizados para abordar a memória dos clubes, a identidade das agremiações, relembrar taças, campeonatos e glórias, rivalizar com outros times e incentivar os jogadores durante as partidas. Mostrarei a partir deste momento uma série de exemplos utilizados em campo, sempre demonstrando a música original, as adaptações e objetivos dessas apropriações.

Uma clássica apropriação presente em nossos estádios é a da música “Arerê”, de Ivete Sangalo, que diz:

Arerê
Um lobby
Um hobby
Um love com você

Os torcedores modificam para:

Arerê
Tal time vai jogar a série b
Ê
Ê
Ê

Nesse momento, o “tal time” é substituído pelo clube para o qual a ofensa e a zoação são direcionadas. Utilizada para ridicularizar times que caíram ou estão rumo à 2ª divisão nacional, ou como mais conhecida, para a Série B do Campeonato Brasileiro.

Outra obra que aparece nas arquibancadas é “Domingo eu vou”, de Neguinho da Beija-Flor, que originalmente era cantada por torcedores do Clube de Regatas do Flamengo (RJ). A torcida do São Paulo Futebol Clube (SP) canta assim:

Domingo eu vou lá no Morumbi
A Independente vai invadir
Vou levar foguetes e bandeiras, não vai ser de brincadeira
Ele vai ser campeão porque eu não quero cadeira numerada
Eu vou de arquibancada pra sentir mais emoção
Porque meu time bota pra fuder
E o nome dele é vocês que vão dizer Oô oô oo oô oo oô São Paulo!

Já a torcida do Sport Club Corinthians Paulista (SP) canta assim:

Domingo eu vou lá no Fielzão
Ver o jogo do Timão
Vou levar foguetes e bandeiras, não vai ser de brincadeira
Ele vai ser campeão
Porque eu não quero cadeira numerada
Eu vou de arquibancada pra sentir mais emoção
Porque meu time bota pra fuder
E o nome dele é vocês que vão dizer Oô oô oo oô oo oô Corinthians!

Essa música também foi adaptada para a torcida do Coritiba Foot Ball Club (PR) e Clube Atlético Mineiro (MG).

Outra canção adaptada para os jogos é “Anna Júlia”, da banda nacional Los Hermanos, que diz:

Quem te vê passar assim por mim
Não sabe o que é sofrer
Ter que ver você, assim, sempre tão linda

Contemplar o sol do teu olhar, perder você no ar
Na certeza de um amor
Me achar um nada
Pois sem ter teu carinho
Eu me sinto sozinho
Eu me afogo em solidão

Oh, Anna Júlia
Oh, Anna Júlia

A torcida do Clube de Regatas Vasco da Gama (RJ) adaptou a obra para:

Sempre ao teu lado até o fim
Minha vida é você
E a torcida do vascão
Sempre tão linda

Nós viemos para te apoiar
Juntos vamos ganhar
Na alegria e na dor (....)

Em algumas ocasiões, as próprias obras de clubes são modificadas e ressignificadas como cantos de ofensa, como no caso da música “Tema da Vitória”, cantada pela torcida do Flamengo, que afirma:

Tu és time de tradição
Raça, amor e paixão
Oh, meu mengo

Eu sempre te amarei
Onde estiver, estarei
Oh, meu mengo!

Algumas torcidas brasileiras, dentre elas a do Clube Atlético Mineiro (MG), que rivalizam com a torcida flamenguista, cantam a obra da seguinte maneira:

Eu, sempre te odiei
Sempre vou te odiar
Tomar no cu, Mengo

Tu és
Time de otário e cuzão
Puta, viado e ladrão
Tomar no cu, Mengo

Isso abre discussão para outro texto meu na Revista Meer, sobre o conteúdo, preconceitos e estereótipos sociais que aparecem em disputa fora dos estádios e que se manifestam dentro da performance torcedora nas arquibancadas. Infelizmente, neste texto, não consigo abordar tudo! O espaço é curto! Porém, fica meu convite para que você volte ao meu perfil para ler os outros textos sobre o assunto! Será um prazer compartilhar meus textos sobre o futebol.

Só para terminar, existem outras obras que são utilizadas, não modificadas, mas utilizadas em determinados contextos dentro de campo. Isso acontece com a música “Vou Festejar”, da falecida botafoguense Beth Carvalho:

Não vou ligar
Chegou a hora, vais me pagar
Pode chorar, pode chorar

É, o teu castigo
Brigou comigo, sem ter porquê
Eu vou festejar, vou festejar!

O teu sofrer, o teu penar
Você pagou com traição
A quem sempre lhe deu a mão
Você pagou com traição
A quem sempre lhe deu a mão

Esta canção foi apropriada pela torcida do Clube Atlético Mineiro (MG) e Clube de Regatas do Flamengo (RJ) como comemoração em relação à derrota do outro time em campo. Inclusive, há uma contradição nesse processo. O Botafogo de Futebol e Regatas (RJ) é rival histórico do Flamengo (RJ), o que abre brechas para o questionamento da apropriação da música sem conhecimento da identidade da cantora ou do próprio time. Já com a torcida mineira, há uma identificação. Beth cantou a música na festa de comemoração do título da Série B do “Galo” em 2006.

Infelizmente, preciso terminar meu texto. Sei que daria para escrever uma dissertação de mestrado sobre o assunto. Inclusive, penso nisso! Mas, enfim, fica para outra hora. A questão é: falar de futebol “dá” muito pano para a manga. Tentei ser direto, objetivo e simples. É complicado? Sim. Mas é apenas um pedaço de algo mais complexo. No fim das contas, podemos dizer que o futebol é vivo e se apropria de canções, temáticas e ideias que ultrapassam as arenas e arquibancadas.