Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O que eles mais gostam é estar em silêncio — um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos ou declamatórios. Um silêncio... Este impoluto silêncio em que escrevo e em que tu me lês.

(Mario Quintana)

Muitos são os poetas que abordam o silêncio, dentre eles podemos citar nomes como Cecília Meireles, Mário Quintana, entre outros. No silêncio há algo muito profundo, que muitas vezes a palavra não dá conta. Em seu poema Pequeno Esclarecimento, Mario Quintana1 aborda esse silêncio, um silêncio cheio de conteúdo. Além da música, o silêncio também é um tema frequente na filosofia. Um dos nomes mais conhecidos na abordagem do silêncio e do ruído é do artista norte-americano John Cage. Em seus oitenta anos de vida, Cage produziu uma obra que influenciou muitos artistas, inclusive artistas brasileiros, em suas passagens pelo Brasil, na década de 60 e posteriormente em 1985, para sua participação na Bienal de São Paulo. Suas obras são consideradas como precursoras para o happening e seu trabalho com a apropriação do cotidiano trouxe grandes contribuições para uma aproximação entre arte e vida. Na produção de Cage destacam-se sua utilização do silêncio como forma de inserir os ruídos ambientados em seu trabalho composicional.

O silêncio existe?

Em sua experiência em uma câmara anecóica – espaço construído para vedar a entrada do som externo, de modo a reverberar apenas a produção ocorrida dentro da câmara – após ter permanecido sozinho e em silêncio, Cage relata ter ouvido dois sons: o de seu sistema nervoso e de sua circulação sanguínea2. Esses dois sons são presenças constantes na vida de qualquer ser humano, mesmo quando relegados a uma impercepção devido ao grande volume sonoro externo ao qual estamos expostos, ainda assim os sons do nosso corpo não deixam de nos acompanhar. Com essa experiência, Cage conclui que o silêncio, tal qual é compreendido - como é ausência de sonoridade, não existe para o ser humano.

Quatro minutos e trinta e três segundos

Em sua vasta obra, Cage se utilizou da colagem de sons, do acaso e da indeterminação. Sua investigação sobre as dimensões físicas e psicoacústicas do silêncio e do ruído ocupam uma posição central em sua produção. Sua obra icônica é a peça "4’33”" (quatro minutos e trinta e três segundos) concebida em 1952. Em sua execução, o pianista David Tudor sobe ao palco, em uma sala de concerto, senta-se ao piano e sua única ação é levantar-se e fechar do tampo do piano em três momentos, após 33”, 2’40” e 1’20”. Após esse tempo, Tudor abre o tampo do piano pela última vez e sai do palco. O tempo total dessa apresentação é de quatro minutos e trinta e três segundos, tempo em que a sonoridade como tosses da plateia, o ruído dos movimentos da plateia na cadeira, sons da expressão de desconforto, entre outros sons externos, são possíveis de serem ouvidos a partir da ausência de uma sonoridade advinda do palco, produzida pelo pianista. Nesse caso, a ‘produção’ é o próprio ambiente sonoro. Em 4’33” Cage estava tratando da relação entre silêncio/ruído, e colocando em diálogo a produção versus ausência de produção pela figura do artista. Nessa obra, Cage propõe primordialmente a incorporação de elementos do cotidiano na arte. Com essa apropriação, o artista se utilizava do acaso como instância de arbítrio sobre o que soa, compreendendo que não havia como controlar ou mesmo prever o resultado de cada apresentação, numa aproximação com o próprio fluxo de acontecimentos da vida cotidiana. Para Cage:

[...] o propósito da música sem propósito seria conseguido se as pessoas aprendessem a ouvir. Que quando elas ouvissem, deveriam descobrir que preferiam os sons da vida cotidiana àqueles que hoje ouviriam nos programas musicais1.

Ele encarava a vida como música, e todos os sons ao nosso redor seriam dignos de serem escutados com atenção. A obra 4’33” não é, portanto, uma negação da música, e sim uma afirmação da onipresença sonora.

Os opostos são complementares

O silêncio e o ruído são empregados na arte em contextos diversos, visando diferentes intenções. O silêncio muitas vezes se apresenta em contextos políticos, espirituais, conceituais e estéticos, entre muitos outros. Assim como o vazio, muitas vezes o silêncio se apresenta na arte em momentos em que se almejava algo a mais, fazendo algo a menos, através da retirada, ou eliminação de outros elementos. A crítica de arte Susan Sontag afirma que o silêncio nunca deixa de implicar seu oposto e depender de sua presença4, o que evidencia que o silêncio, seja qual for o contexto, está sempre lidando com um outro elemento. Sontag afirma que assim como o silêncio não existe, também não existe o espaço vazio, já que na medida em que o olho humano está observando, sempre há algo a ser visto. Olhar para alguma coisa que está vazia ainda é olhar, ainda é ver algo. Nesse sentido, o silêncio surge como uma metáfora, com a busca de algo a mais, e aparece então como pré-condição para uma visão asseada. Essa utilização metafórica é característica da obra 4’33” de John Cage. O silêncio, no sentido de uma ruptura, como a abertura de espaço para o novo, proporciona um estado meditativo preparatório para o amadurecimento e pode ser analisado como uma tomada de consciência do ser. Acerca do silenciar da fala, Sontag aponta que apenas após um momento de silêncio vem a consciência da palavra proferida.

Zen Budismo

Além do Silêncio, Cage trabalha com o acaso e acredita que a repetição de sons, mesmo aqueles aparentemente desinteressantes, pode ser ouvida de outra forma através da repetição. Sobre a repetição, Cage cita a tradição oriental: Os hindus, há muito tempo, sabiam que a Música transcorria permanentemente e que ouvir era como olhar por uma janela para uma paisagem que não deixava de existir quando a gente parava de olhar2. Como praticante do Zen Budismo, Cage aprendeu com o Zen a prerrogativa de que se algo está desinteressante depois de dois minutos, devemos tentar por quatro minutos. Se mesmo assim continua desinteressante, então devemos tentar por oito, dezesseis, trinta e dois minutos, e assim por diante. Eventualmente, se descobrirá que aquilo não é entediante, mas muito interessante3. Esse ensinamento diz respeito à nossa percepção, uma vez que nossas impressões não são fixas, mas mutáveis. Nossa percepção sobre um mesmo evento pressupõe variações em decorrência do tempo, mesmo que esse tempo seja de dois minutos. O tempo age, nesse sentido, enriquecendo nossa experiência. Dessa forma, Cage abordava o tempo em suas proposições como a possibilidade de uma expansão da percepção.

Notas

1 Quintana, Mario A vaca e o hipogrifo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
2 Cage, John. De Segunda a um ano. Tradução de Rogério Duprat; revista por Augusto de Campos. 2. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.
3 Cage, John. Silence. Connecticut: Wesleyan University Press, 1973.
4 Sontag, Susan. A Vontade Radical. Companhia das Letras, São Paulo, 1987.