“Nonada”. A primeira palavra com a qual João Guimarães Rosa começa o Grande Sertão: Veredas, 1956. Ao contrário do que se especulou, nonada não é uma palavra inventada, os dicionários atestam o significado como pouca coisa, ninharia. Mas a palavra pode ser considerada como um exercício de apontaria do narrador que atira contra uma árvore. De praticamente nada o autor elabora uma grande travessia, existencial e telúrica, que é, enfim, uma grande negociação da existência com a terra. Ainda nas primeiras páginas, Rosa escreve: “O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho”.
Nonada. Os artistas aqui presentes também exercitam a pontaria, buscam longe tudo aquilo que chamamos imagem. Eles são seres do sertão. Possuem uma forte ligação com Minas Gerais que aqui é muito menos identitária e muito mais uma disposição à travessia. Com uma distância que é simultaneamente geológica e geográfica, diversas são as obras que apresentam a experiência da terra. Com os pés (empoeirados) e com as palavras (escritas à mão), Paulo Nazareth (1977) ativa o sentido mais primordial de cruzar uma fronteira física e linguística. Cada passo é uma medida política e poética. O artista foi capaz de dar um sentido poliglota ao silêncio, tendo sua nacionalidade interpretada nos mais distintos guetos americanos: será ele latino, paquistanês, africano? Essa é uma mundanidade de Minas que poucos abordam, e que faz Paulo Nazareth transformar o mundo em imundo. O artista desfaz a virtualidade do mundo, isto é, seus mapas, com os próprios pés. Mestre em despertar o sentido por aquilo que é mais elementar, Paulo Nazareth não hesitou em caminhar léguas em direção a alguma utopia perdida apresentada em obras como Notícias da América (2011-2012) e Velha esperança (2017). Essa utopia oscila entre a terra e a pele: À la fleur de la peau, por exemplo, expõe a memória de gerações gravadas na pele e nas imagens de produtos, de letreiros e de objetos que se inscrevem nas fronteiras do capitalismo periférico.
Solange Pessoa (1961), por sua vez, dá forma ao inconsciente da terra. A artista está constantemente reinventando a origem (Invenção de origem, 2018), algo que antecede a invenção de Minas Gerais. A artista recria uma No Man’s Land (2015), isto é, ela evoca formações anteriores às cartografias. Antes da razão dos mapas, Solange Pessoa busca no tempo e no espaço uma dimensão “mântica” e “semântica” da terra por meio de um conjunto de práticas relacionadas a aspectos misteriosos bem próximos da magia. Sua obra se situa no limite do orgânico e do inorgânico, nas indefinições do masculino e do feminino, no coito permanente da matéria que ignora até mesmo a própria humanidade que tenta contê-la e dominá-la. Por outro lado, Pessoa organiza a matéria de modo redundante, fazendo coincidir matéria e palavra: pedras são pedras, tecido, tecido, e, cabelos, cabelos. Essa “coincidência” é capaz de produzir visões, epifanias, comunicando uma forma que pode ser assimilada por nós antes mesmo de ser compreendida.
Diferentemente de Solange Pessoa, as tessituras e torções de Sonia Gomes (1948) evocam corpos híbridos que ganham espaço. A artista dá forma a seres inventados por uma montagem de objetos que se assemelham a uma mescla de distintas experiências femininas. A escolha da matéria têxtil é propícia para a argúcia, de modo que a artista assinala com tais corpos um nascer contínuo, como pode ser percebido em A vida renasce, sempre (2018) ou Memória (2004).
Patrícia Leite (1955) nos apresenta outra dimensão da profundidade: a experiência da noite pela pintura. Ela faz da pintura uma experiência única da noite de modo que, mesmo diante de telas em que o dia está posto, existe uma duração limitada que nos direciona para um convívio com as estrelas. Do pôr-do-sol ao amanhecer, Patrícia Leite encontra a distância justa para o céu estrelado. A artista modula, assim, as representações do céu. Ela nos aproxima de uma paisagem com a lua (De longe, 2015), da abóbada de uma catedral (Italy, 2014), de um farol e de postes de iluminação artificial. A representação dos astros, as tendas de circos, ou os luminosos nos orientam por outra profundidade: a das constelações.
Ainda na experiência da noite, o lusco-fusco, de 1991, de Amadeo Lorenzato (1900-1995), evoca o puro ato de pintar: o conjunto de luzes evoca uma noite em um bairro popular, algo que pode ser compreendido observando outra tela, Sem título, de 1990. O artista literalmente penteava a cor, como observou Laymert Garcia dos Santos. Essa dimensão delicada e feminina pode ser observada ao longo da obra do artista. Depois de ter sofrido um acidente em 1956, Lorenzato passa a dedicar-se integralmente à pintura. Autodidata, Lorenzato é autor de paisagens que revelam espíritos aparentemente lânguidos, mas que estão em consonância com o ambiente. Em Flora e fauna tropical, de 1977, três mulatas estão deitadas no chão. As mulheres com cores dos troncos das árvores mais parecem a extensão das próprias raízes. Em outra pintura de meados dos anos 1970 um pensador dorme ao lado da relva. Ao fundo e no alto um castelo praticamente está diluído com o céu.
Em outra perspectiva do movimento, Marina Perez Simão (1981) busca, por uma estética de fragmentos, uma paisagem ou algo que poderia ser considerado posterior à paisagem. No entanto, em uma pintura “Sem título”, de 2017, em que há brumas contra as árvores, existe uma luta pela figuração. Detalhes e pontos de vista que se aproximam da técnica fotográfica, por vezes, opõem-se a outras pinturas da artista em que a presença humana é praticamente intrusiva. Ademais, o uso de materiais diversos como a aquarela e a fotografia são agrupados por uma espécie de diário que marca o olhar lírico da artista.
Para voltar às veredas de Rosa: a exposição tem dois artistas cuja sensibilidade se diferem, mas que se complementam: Amílcar de Castro (1920 – 2002) e Lygia Clark (1920 – 1988). Em Escultura de corte e Dobra quadrada, de Amílcar de Castro, ambas de 1998, encontramos a realização de um procedimento que está em um dos poemas escritos pelo próprio artista: “quando corto e dobro/ uma chapa de ferro. Ou somente corto/ pretendo/ abrir um espaço/ ao amanhecer na matéria bruta/ luz que vela e revela/ a comunhão do opaco/ com o espaço dos astros/ espaço/ que descobre o renascer/ redimindo a matéria pesada na intenção de voar.” Em Lygia Clark temos as próprias veredas e o infinito para onde vai o sertão de Rosa. Em Composição, de 1956, a multiplicidade de planos e de “dobras” configura um movimento que pode muito bem seguir até a obra Caminhando, de 1963. Um modo mínimo de ativar uma sensibilidade geômetra ao infinitamente ínfimo. Nonada.
(Eduardo Jorge de Oliveira)
Pego a vereda da cachoeira ando na frente. O barulho da àgua, do grilo cantando da palha mexendo da noite caindo. vejo sua sombra contra uma pedra sua sombra preta na pedra molhada. o medo de cobra o medo do demo. Medo de me perder de cair no abismo. Te vejo na frente na sombra te escuto atrás do meu ombro igual um espirito ando na frente pela vereda escutando a água adivinhando o destino. Escuto a água morrendo de sede. Adivinho você me seguindo. Medo da noite, é pra nois achar nossa casa, que não existe lá fora: casa de tijolo, de barro, de taipa... mas casa boa pode ser só de fiapo de grama mexido barro também... porque não nus assusta .... o que assusta é se o fogão a lenha se apaga ... e assombra nossa alma .... O seu horizonte era minha miragem onde me perdi. A fome trançada na cordilheira era eu menino a poeira grudada na canela de correr na ladeira. Era a mina escavada a terra esburacada bem no meio do seu coração. Tinha pena da terra mas era o meu rastro. Era a sola do meu sapato marcada no barro a prova de que será eu bem ali. Eu pequeno no pega-pega fugi dos meus primos... ninguém me alcançava … subi no abacateiro...do alto olhei arruaça deles correndo em mandala em volta do tronco…. gritei gargalhei alto e o abacateiro sacudiu o galho pra eu cair e eu cai. cortei minha língua ao meio… e foi assim que aprendi a me calar. O futuro adivinha o passado. A noite escura me da medo de espirito durmo ao relento. acho meu caminho pela casa sem luz tocando as paredes e de olhos fechados até a janela pra ver as luzinhas da cidade lá depois do horizonte ondulado como faz para chegar... caminhos sinuosos em forma de cobra e se olha mais de longe vê logo que essa cobra são muitas ate que se tem uma medusa. as veredas estão na cabeça da gente. se perde por fora se perde por dentro. se acha por dentro se acha por fora.
(Prosa entre Marina Perez Simão e Pedro Mendes)