A pretexto do novo ano e apesar de consciente da subjectividade inerente a este tipo de exercício, julgo pertinente fazer uma análise ao que de mais relevante se passou no universo da arquitectura portuguesa no ano que passou. Para esse efeito, socorro-me de três acontecimentos que marcaram o ano e a disciplina. Sobretudo porque são, do meu ponto de vista, esclarecedores do estado de coisas na relação entre a arquitectura, enquanto modo de intervir e melhorar o território que habitamos, e a sociedade portuguesa, por contraditórios que sejam ou pareçam ser. Poderão ser analisados de forma independente uns dos outros, como acontecimentos isolados. No entanto, julgo que ganham outra dimensão quando colocados em perspectiva.
O primeiro desses acontecimentos recentes que acaba por marcar o ano passado é o aparente retrocesso na definição dos actos próprios dos arquitectos. Digo ‘aparente’ por não ser ainda clara a conclusão do processo. Mas tanto quanto se pode perceber até ao momento, a luta de tantos colegas de várias gerações para que a arquitectura seja praticada por quem de direito, ou seja, pelos arquitectos, parece estar longe de concluída ou sequer definida. O mais admirável no meio deste processo é não haver, por parte da sociedade civil, o mais ligeiro incómodo ou sinal de perturbação. Como se fosse possível haver arquitectura que não seja feita por arquitectos. Trata-se de uma questão civilizacional. Como bem referiu José Manuel Pedreirinho, Presidente do Conselho Directivo Nacional da Ordem dos Arquitectos para o triénio 2017-2019, suponhamos que, de um momento para o outro, as mulheres portuguesas voltassem a ter os filhos em suas casas, com ajuda de parteiras, pessoas com um conhecimento ancestral da prática, em vez de recorrerem aos serviços de saúde dos hospitais portugueses. Por muito que isso se justificasse culturalmente, pelos usos e costumes, nenhum de nós precisa de elaborar um raciocínio extraordinário para concluir que isso significaria uma perda na qualidade dos serviços de saúde e na natalidade em Portugal.
Num momento em que o próprio Primeiro Ministro do Governo Português manifestou a sua estranheza em relação a esta matéria, naquilo que apelidou de “retrocesso de um dos maiores ganhos civilizacionais”, a Assembleia da República discutiu na especialidade os projectos de lei do PSD e do PAN, para permitir a outros profissionais o exercício dos actos próprios dos arquitectos. Convém lembrar os mais esquecidos ou desconhecedores dois aspectos:
Em primeiro lugar, fazer arquitectura não é o mesmo que fazer engenharia. Ambas são práticas relacionadas directamente com a construção civil, mas perfeitamente separadas. Desejavelmente, um bom projecto de arquitectura deve ser complementado com bons projectos de especialidades que, no seu conjunto, informam o projecto global de um edifício, seja para construir de raíz ou não e onde se inclui, naturalmente, o projecto de estabilidade.
Em segundo lugar, a ideia de que os engenheiros civis podem e devem elaborar projectos de arquitectura surgiu na sequência do famoso Decreto-Lei nº 73, de 1973, altura em que Portugal viveu um aumento significativo da população nas cidades, especialmente em Lisboa e no Porto, com a consequente procura de habitação, e em que o número de arquitectos no país era reduzido, sobretudo quando comparado com o número de engenheiros civis. Conjugaram-se, portanto, dois factores decisivos para que os engenheiros civis ocupassem a linha da frente na resposta à precariedade da habitação e da construção civil em Portugal. Excesso de procura de uma população em movimento e escassez na oferta por parte dos arquitectos, cuja organização enquanto classe profissional atravessava igualmente uma fase de redefinição1.
No entanto, actualmente, a realidade é bem distinta. A Ordem dos Arquitectos sucedeu à Associação em 1998 e tem a incumbência de regular o exercício da profissão em Portugal, dada a crescente afirmação dos arquitectos no país, que desse modo reconheceu a Arquitectura como uma actividade de interesse público. O número de licenciados em arquitectura e de membros inscritos na Ordem dos Arquitectos aumentou exponencialmente nas últimas duas décadas. Não obstante, não deixa de ser absolutamente contraditório reconhecer na Arquitectura uma das actividades de maior prestígio em Portugal e, simultaneamente, entregar o ordenamento das nossas cidades e a nossa arquitectura a outros técnicos, condenando à emigração e ao desemprego as centenas ou milhares de recém-licenciados em arquitectura e as nossas cidades à falta de competência de engenheiros civis.
O segundo acontecimento de 2017 digno de registo para a arquitectura portuguesa, foi a inauguração da Casa da Arquitectura - Centro Português de Arquitectura, nas antigas instalações da Real Companhia Vinícola, em Matosinhos. Originalmente criada em 2007, a Casa da Arquitectura funcionou desde 2009 no edifício que pertenceu à família do Arquitecto Álvaro Siza, na Casa Roberto Ivens, em Matosinhos. No essencial, tem como missão tratar, arquivar e dar a conhecer os acervos e espólios de Arquitectura doados, depositados ou entregues ao seu cuidado; criar uma colecção de obras iconográficas e emblemáticas da cultura arquitectónica nacional e internacional; incrementar e apoiar a investigação e divulgação do conhecimento no domínio da Arquitectura; realizar conferências, colóquios, conversas, workshops e outras actividades relacionadas com o debate, a reflexão e a promoção da Arquitectura e das Artes; fomentar actividades de carácter lúdico, turístico, cultural e social destinadas a diversos públicos que contribuam para o melhor e maior conhecimento da Arquitectura nacional e internacional2 .
A inauguração recente das suas instalações, não permite ter uma noção muito clara da qualidade do seu funcionamento e da sua oferta. Mas a existência de um equipamento desta natureza, fora das duas maiores cidades do país é, por si só, uma iniciativa meritória e que merece elogio. Por outro lado, se o objectivo passa pela aproximação dos mais variados públicos à prática da Arquitectura, seja ela de onde for, através de exposições, publicações, serviço educativo, acervo documental, etc., só resta fazer votos para que a Casa da Arquitectura continue a crescer e sirva para afirmar a Arquitectura como um bem ao serviço da comunidade.
A última notícia que 2017 trouxe ao nível da Arquitectura e que considero relevante para o balanço do ano, foi a atribuição do Prémio Pessoa ao Arquitecto Manuel Aires Mateus. É o terceiro arquitecto a ver o conjunto da sua obra reconhecido com a entrega deste prémio, depois de Eduardo Souto de Moura e Luís Carrilho da Graça. De Manuel Aires Mateus, o júri destaca "a sua arquitectura (...) moderna, abstracta e contemporânea, [que] parte de uma recolha de formas e materiais vernaculares portugueses, que integra de um modo exemplar. A construção das formas e volumes é feita com um carácter inovador, por subtração da matéria, esculpindo vazios, contrariando assim o sentido clássico de projectar" 3.
Numa entrevista à revista "E" do Jornal Expresso de 23 de Dezembro de 2017, Manuel Aires Mateus afirma que, para ele, a arquitectura é uma arte, mas que não está acabada. Precisamos da vida para a acabar. Só assim é que ela se completa e é que ela se significa. Como necessita de vida, é uma arte em espera. Na mesma entrevista, Manuel Aires Mateus afirma algo muito bonito e de extraordinária inteligência. Para o arquitecto, a possibilidade de vida é algo que a arquitectura tem que descobrir em cada momento, o seu trabalho é permitir a vida, dar-lhe possibilidades de emoção, de descoberta. A sua beleza reside na forma como responde às várias circunstâncias e como atribui significado à matéria de que é feita.
A ideia comum subjacente à proposta de lei do PSD e do PAN, e à atribuição do Prémio Pessoa a Manuel Aires Mateus é a de que a arquitectura portuguesa é uma actividade de e para as elites e, nesse contexto, uma profissão de excelência. Ao nível da melhor arquitectura mundial. E que o que se passa por baixo dessa capa de virtuosismo e qualidade não importa verdadeiramente. Como se as cidades fossem feitas apenas de monumentos ou edifícios excepcionais e não maioritariamente pela arquitectura anónima e de acompanhamento. Consequentemente, a própria sociedade reconhece e incentiva a existência de uma arquitectura portuguesa de topo, feita por arquitectos extraordinários como Manuel Aires Mateus. Mas, para os problemas do quotidiano, talvez seja melhor recorrer aos serviços de engenheiros civis.
Parecemos querer reduzir a Arquitectura a meras questões decorativas e de embelezamento, de onde nunca chegámos a sair, porventura. Teremos que voltar a Ledoux, saber valorizar as partes e a sua autonomia, para podermos valorizar o todo. E deveremos, acima de tudo, considerar e defender que toda e qualquer obra, desde a cabana mais pobre até aos palácios reais, deverá beneficiar dos ofícios da arquitectura, na busca do belo e da atribuição de significado de que fala Manuel Aires Mateus. Isso é trabalho de arquitecto e de mais ninguém.
Notas
1 Relembre-se que o Sindicato Nacional dos Arquitectos deu lugar à Associação dos Arquitectos Portugueses em 1978, na ressaca da Revolução de Abril de 1974.
2 Informação disponibilizada no site oficial da Casa da Arquitectura.
3 Excerto da acta do júri, disponível aqui.