Seguindo a tendência contemporânea das exposições “blockbuster”, o museu Thyssen Bornemisza, localizado na capital espanhola, abrigou durante quatro meses (de junho a outubro de 2015) num de seus espaços dedicados a mostras temporais a coletânea de fotos “Vogue, like a painting”, que gerou bastante frisson na cidade (como costuma acontecer neste tipo de mostra).
A proposta, implícita no título da exposição, era trazer em grandes e belas ampliações fotos realizadas por alguns nomes ilustres da fotografia inspiradas por grandes pinturas de todos os tempos, fotos estas que já estamparam capas e páginas da mais importante, lida e respeitada revista de moda atualmente (muito embora quando vejamos o vídeo disponível no site da exposição, parece que a mostra também tinha a função de ser uma ode a uma suposta vocação artística da revista).
Tal como a maior parte deste tipo de exposição, que se utiliza do apelo de elementos da cultura de massa contemporânea (cantores pop, programas de televisão, diretores de cinema populares, revistas de moda), o que em si não traria nenhum problema se não viesse acompanhada por uma certa ludicidade vazia, “Vogue, like a painting” sofria de uma carência monumental de contexto. Quem já esteve em algumas das últimas exposições no MIS, em São Paulo, sabe a que me refiro: a aclamadíssima exposição sobre o Castelo Rá Tim Bum (para citar um exemplo), que teve de ser prorrogada tamanho o estrondo que gerou, não apresentava uma mísera referência a Gaudi, ainda que a base cenográfica primordial deste excelente programa infantil exibido nos anos 90 pela TV Cultura sejam as construções do arquiteto - e que o hall do castelo seja praticamente uma cópia da sala da casa Batlló, um dos maiores pontos turísticos de Barcelona, cidade onde deixou seu legado mais importante. A exposição comoveu o público basicamente porque o Castelo tem um valor afetivo enorme para o público jovem e adulto paulista, e vê-lo reproduzido reativou diversas sensações e memórias de quem era criança há vinte anos atrás. Processos semelhantes se deram com as exposições sobre o David Bowie e Stanley Kubrick. Lindos cenários que encantam os olhos e ativam a nossa memória afetiva. Tire todo o sentimento e alguns escassos arquivos documentais, e o que sobra é absolutamente ínfimo e insuficiente para sustentar uma exposição.
Com a exposição da Vogue, houve ainda o agravante do marketing em torno da “aura artística” da revista e da falta de ligação patente entre as fotos. Elas pareciam escolhidas ao mero acaso e juntas não produziam discurso algum além da primazia pela técnica e do fato de fazer referência a pinturas. E até neste ponto se nota que a curadoria, um tanto preguiçosa, não tirou proveito do material exposto, já que não havia menção sobre quais quadros/pintores inspiraram as fotos, nem mesmo uma mescla expositiva de quadros e fotos. Fica tudo a critério da bagagem imagética do espectador: a foto está pendurada com o nome do fotógrafo e pouco mais (como o país em que se publicou aquela edição da Vogue – um dado de relevância bastante discutível). Quem tem mais conhecimento artístico consegue reconhecer bastante coisa, vira até um desafio que entretém e tornam os sete euros da entrada menos doloridos. Mas, aqueles que não têm, ficam ali à deriva entre as fotos, uma salinha de vídeo e dois vestidos ainda mais descontextualizados que as fotos.
Isso sim, as fotos são realmente bonitas (e os vídeos também). No entanto, havia algo mais ali naquelas salas pintadas de cor pastel de paredes cobertas com réplicas fotográficas tecnicamente perfeitas. Um leve desconforto, um elemento inquietante, que talvez nem seja possível identificar ali, no momento. Uma presença invisível, acidental (certamente não era a intenção de quem idealizou a exposição), porém indelével e muito, muito real: a morte.
É claro que as fotos não retratam pessoas mortas, e nem fazem uma alusão clara à morbidez, mas aqui entramos num terreno conceitual muito anterior a nós e à Vogue, porém que ainda preserva seu frescor e sua atualidade de tal forma que poderíamos pensar que é um fenômeno da contemporaneidade. Este fenômeno seria a ideia (ou a constatação) de que a moda é intrinsecamente indissociável da morte. Giacomo Leopardi, entre o final do século XVIII e o começo do XIX, escreveu um divertido diálogo aonde a Moda se apresenta como ninguém menos que a irmã da Morte. No princípio do diálogo, a Morte se exaspera e não lhe dá nenhum crédito, mas ao final ela própria se vê obrigada a admitir e reconhecer os feitos que sua irmã, a Moda, fez ao longo da história humana em seu nome.
A analogia entre as duas, vai muito além da efemeridade daquilo que é postulado pela moda, de como o que é moda num determinado momento rapidamente perece (a Moda explica à Morte que ambas são filhas da Caducidade). Num trecho do “Diálogo da Moda e da Morte” a segunda desdenha dos feitos da primeira, ao que esta lhe responde “Demonstras não conhecer o poder da moda”, para logo em seguida discorrer sob quais mecanismos tortura e manipula os homens, fazendo com que a própria vida esteja mais morta que viva, já que todas as suas obras têm o único fim de aumentar o reino da irmã sobre a Terra.
O texto de Leopardi é parada obrigatória quando se fala das interseções entre a morte e a moda, mas é um dado conhecido que essa relação já havia sido estabelecida anteriormente, e também que foi retomada e esmiuçada por diversos pensadores até os dias de hoje.
É extremamente curioso analisar como esta proximidade transcende o território conceitual e se materializa na representação cultural e imagética da moda. Ali, diante daquele conjunto de imagens (por muito que fossem releituras de outras obras, eram imagens concebidas pelo universo da moda) é impossível ignorar o signo da morte, seja na decrepitude, no desalento, numa atitude de desolação em cada uma delas, ainda que muito revestidas de glamour, beleza e perfeição.
Façamos aqui um parêntese importante atentando para o fato de que a morte dentro do discurso visual da moda nunca é parte do ciclo natural das coisas vivas de chegar ao seu fim. A morte no universo simbólico da moda é sempre trágica, desesperada, precoce. Uma morte bovariana, por assim dizer. A personagem de Gustave Flaubert (Emma Bovary) vem à tona como uma comparação plausível não só pelo seu final em si, mas por sua morte em vida, por sua atitude desesperada, seu tédio, sua compulsão consumista que nunca a sacia e cuja relação com a moda é vital, já que a personagem contrai uma dívida descomunal fazendo com que seu vestuário, a decoração de sua casa e seus hábitos cotidianos estivessem de acordo com a o que regia a última moda em Paris.
Em alguns casos em “Vogue, like a painting”, a presença desta morte terrível era bastante óbvia. Por exemplo, um dos vídeos mostrados era uma mais que evidente releitura do filme “Viagem ao fundo do mar” de Georges Meliès. No entanto, apesar dos figurinos impecáveis e da linda ambientação, havia uma atitude depressiva na movimentação das modelos e em suas expressões faciais de desânimo profundo, e ao invés de viagem ao fundo do mar, o vídeo estava mais para velório no fundo do mar. Em outro momento do vídeo, numa referência ao bem-humorado “A Sereia” do mesmo Meliès, uma sereia era mostrada dentro de um tanque claramente morrendo de asfixia. Em outra parte, há uma foto que retoma a Vênus de Botticelli, porém ao contrário da obra original, que mostra a beleza feminina em todo o seu esplendor emergindo de uma concha, vemos, reformuladas nos mesmos tons e cores da pintura, uma concha decrépita e descascada no meio de um lago abandonado com uma Vênus numa espécie de jangada jogada ao léu, exausta, deprimida. Ainda quando a decrepitude não era tão explícita, ela permeava todas as imagens, como que envenenando-as, deixando-as irremediavelmente tóxicas.
Me pareceu extremamente alarmante que isso só tenha chamado a minha atenção de maneira significativa após ver a narrativa da moda sob o prisma das releituras realizadas para esta exposição, ou seja ao me deparar com imagens que eu conhecia bem e me surpreender com o fato de vê-las recriadas de maneira tão mórbida – ainda por cima sendo expostas de forma tão incompetentemente displicente, que era como se esta verdade perturbadora sequer estivesse lá. Porque esta não é apenas uma realidade das imagens da exposição “Vogue, like a painting”, e sim um fato cotidiano: a moda (com exceção da infantil e da moda praia) só representa imageticamente a pessoas à beira da morte. Uma visita de um minuto à página da vastíssima maioria de marcas (passei a testar incessantemente), especialmente as mais populares destinadas ao público feminino, pode comprovar. Olhos revirados, rostos sem expressão, ombros curvados para frente, fome, magreza, palidez, depressão, suicídio, cansaço, morte. E por alguma razão misteriosa, essa mensagem tão terrível parece nos fazer comprar mais que nunca, e como madame Bovary, desejar o consumo com mais força que nunca, o que nos leva a ter prazeres mais efêmeros – e pouco satisfatórios - que nunca. Na verdade, é um pouco estarrecedor que consigamos sentir tanto desejo diante deste ciclo de consumo e morte tão claramente representado através de imagens extremamente tétricas, mostrando a outros seres humanos tão manifestamente infelizes, sisudos, mortos. Diante deste fato, do intenso anseio pelo consumo que sentimos (invariavelmente gerado pela moda, que mata sempre a si mesma, para renovar-se), que nunca é preenchido porque assim que satisfazemos um desejo abre-se um vazio que deve ser preenchido por outro, e do nosso manso acolhimento à morbidez do que a moda nos diz enquanto linguagem visual, pergunto estupefata: será que o que nos dá prazer é o sofrimento alheio ou será que simplesmente não gostamos tanto de viver como acreditamos?