“Deixai toda esperança, ó vós que entrais!”. Dante Alighieri. A Divina Comédia: Inferno. Séc. XIV
A epígrafe, retirada da primeira parte da Divina Comédia de Dante Alighieri, cita a inscrição do portal do Inferno, lida pelo autor antes da sua descida e posterior subida ao céu. Serve-nos como uma advertência para a constatação apocalíptica de que a família, a moral e os bons costumes acabaram. O poema de Dante Alighieri marca a passagem da Idade Média ao Humanismo, primeiro dos movimentos que, em detrimento da religião, situará a razão em lugar central no desenvolvimento humano.
Era com essa predição gravada em uma placa que Nikola Tesla (1856-1943) recebia aqueles que entravam em seus laboratórios. O engenheiro nascido em Smiljan, no então Império Austríaco e hoje parte da Croácia, é reverenciado como inventor de tecnologias que mudaram o mundo: inventou e produziu a lâmpada fluorescente, o raio-X, o controle remoto e a robótica, além de ser tido como o verdadeiro criador do rádio; contabilizando cerca de 300 patentes no mundo todo.
Em um de seus estudos, Nikola Tesla demonstrava a possibilidade de fornecimento de energia elétrica limpa e sem fios, através da criação da Torre Wardenclyffe, que seria capaz, também, de transmitir sinais radiofônicos para todo o globo terrestre. Esse feito heroico conferiria à humanidade toda a comunicação e a energia necessárias para seu funcionamento, além de uma melhor relação com seu entorno, que não sofreria o mesmo declínio ecológico que vem experimentando hoje. Tesla seria, então, uma espécie de messias, que entregaria o poder ao homem, tal qual o titã Prometeu que, defensor do Homem na mitologia grega, roubou o fogo de Héstia e o entregou aos mortais. Zeus, que temia que os mortais ficassem tão poderosos quanto os próprios deuses, teria punido Prometeu por este crime, deixando-o amarrado a uma pedra. Nela, uma enorme águia comeria seu fígado todos os dias, enquanto o órgão se regeneraria durante a noite para ser comido de novo no dia seguinte.
Abandonado por seus investidores, que encontrariam um investimento em radiofonia mais barato e de resultados mais rápidos – porém, sem a distribuição de energia limpa e sem fios - Tesla se tornaria recluso até o fim da vida. Sua personalidade excêntrica, suas afirmações aparentemente bizarras e inacreditáveis sobre possíveis desenvolvimentos científicos, faziam-no ser visto como um cientista louco, acarretando em seu próprio ostracismo. Nunca tendo dado muita atenção às suas finanças, Tesla morreu empobrecido aos 86 anos.
Em sua terceira exposição individual na Vermelho, Henrique César aproxima a reverência religiosa da Idade Média com a celebração aos avanços científicos modernos protagonizados por Nikola Tesla. Assim, desenvolve uma iconologia baseada na mistura de ícones religiosos e científicos. É, no entanto, nas religiões de origem africana que César encontra ressonância para suas articulações.
Na série “Xeri de Tesla”, de 2014-2015, vemos representados chocalhos usados com frequência em rituais afro-religiosos. Xeri (palavra de língua Iorubá) é um instrumento de chamado, empunhado pela imagem de Xangô (orixá que rege o trovão, o fogo e a justiça) para domar as descargas atmosféricas. Nos rituais de candomblé, o xeri é empunhado pelos pais de santo com o objetivo de evocar o transe e saudar as divindades. Na série de xeris pintados a óleo sobre papel, vemos esquemas que simulam fisicamente os caminhos dos elétrons e as direções dos campos magnéticos encontrados no projeto da Bobina de Tesla, que é um transformador ressonante capaz de gerar uma tensão altíssima com grande simplicidade de construção. Foi inventada por volta de 1890 e tinha a função primária de transmitir, através da física do seu mecanismo, energia elétrica à distância - tecnologia precursora do wireless. Xeri e Bobina Tesla são, por tanto, equivalentes nesse tríptico, desenvolvendo uma espécie de cânone ao aproximar estâncias distintas da racionalidade.
Em “Elo”, de 2015, imagens apropriadas de um catálogo da Petrobrás, datado de 1976, são organizadas como uma folha de história em quadrinhos, mostrando o processo da extração do petróleo de bacias brasileiras. O artista reproduz as imagens em nanquim e as sobrepõe com a imagem de uma Patipemba riscada em ecoline vermelha. Patipembas são desenhos esquemáticos, normalmente riscados no chão, utilizados em rituais pagãos para atrair as forças dos espíritos. Essa é uma das muitas maneiras de tornar física a mensagem de ancestrais, dentro do culto do Palo Mayombe, uma antiga religião da costa atlântica africana que originou a Quimbanda e influenciou a Umbanda brasileira, além do Candomblé. Henrique César une dois processos distintos (a extração do petróleo e a atração das forças espirituais), que convergem na ideia semelhante de arrebatar energias vindas do solo – uma material, e outra espiritual.
Nos desenhos da série “Estações”, 2015, Henrique Cesar retrata as centrais emissoras criadas por Nikola Tesla para exercer sua pesquisa de distribuição de energia sem fio. Os mecanismos de Tesla aparecem tanto em seus locais de origem – seus laboratórios – quanto sobre as casas onde Cesar esteve quando desenvolveu a série de desenhos. O insulamento que parece ser comum a todas as estações representadas às fazem parecer templos - presumidamente pela qualidade altiva que o artista parece adotar para representa-las.
A insulação também aparece em “Câmara”, de 2015. Na escultura, seis micro-ondas têm suas aberturas voltadas umas às outras, de modo a fazer chocar as radiações emitidas pelos seis aparelhos que funcionam ao mesmo tempo. A energia gerada pelos aparelhos cria um núcleo central de exitância energética que parece pronta para expandir-se em uma implosão. A organização dos utensílios em eixos como os que compõem as três dimensões (altura, largura e profundidade) parece fazer referencia a presumida grande explosão cósmica que, entre 10 e 20 bilhões de anos atrás teria formado o universo como o conhecemos. Estaria a iminência desse estouro tecnológico atrelado a sua capacidade de criação?
Na série “Metalinguística”, de 2015, Henrique Cesar utiliza fragmentos de porta de micro-ondas como suporte para seis pinturas a óleo. São figuras que narram a saga de experimentos da física/ química, responsáveis por enaltecer alguns paradigmas relativos à contenção, dispersão, distribuição, fissão e explosão da energia como grandeza física. Tornam-se, então, ícones construídos a partir de um gesto iconoclasta do artista. Ou seja, se tornam novos símbolos de veneração a partir da destruição de seus antecessores.
Essa nova iconografia encontra seu lugar em “Cosmologia Composta” (2015), um conjunto de quatro desenhos que destacam as estações construídas por Nikola Tesla para aprimorar suas experiências com a transmissão de ondas eletromagnéticas. O conjunto de números serigrafados que sobrepõe tais paisagens traz o número π compreendido em códigos binários. Ou seja, esse grupo de zeros e uns mostram uma maneira binária de se construir a imagem da constante matemática que rege as propriedades da circunferência. Tal constante circular está presente nos cálculos das circunferências e, consequentemente, das ondas provocadas pelo fluxo dos elétrons dentro de um campo magnético. Tornam-se, portanto, um mantra sobre os já mencionados “templos” de Tesla, unindo local de culto e seu “evangelho” na forma de abstrações matemáticas.