A Nara Roesler New York tem o prazer de apresentar Fabio Miguez: Icnografias, primeira individual de Miguez (n. 1962, São Paulo, Brasil) na sede nova-iorquina da galeria. A mostra tem curadoria de Luis Pérez Oramas e apresenta um panorama abrangente da produção do artista com uma seleção de obras recentes pontuadas por pinturas desenvolvidas pelo artista há cerca de dez anos. Segundo o curador, o título da mostra evoca uma observação do arquiteto e poeta francês do século XVII, Charles Perrault, para quem a vista chamada de “ichnografica” de um edifício — seu plano projetivo e inicial – inevitavelmente coincide com o seu rastro final como ruína, com a marca da sua existência na terra, de forma que conceito e vida se articulam em um só devir inexorável.
Um dos fundadores do ateliê Casa 7 – junto a Carlito Carvalhosa, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade –, grupo que na década de 1980, marcou uma renovação da pintura brasileira, baseada nas práticas matéricas e monocromáticas, com influência das figurações neo expressionistas da época, como Basquiat, Anselm Kiefer e Philip Guston, Fabio Miguez tem sua pesquisa pictórica voltada para a espacialidade e materialidade da pintura. Durante os anos 1990, o artista começou a produzir, simultaneamente a seu trabalho pictórico, a série de fotos Derivas, que foram publicadas no livro Paisagem zero (2013). A partir daí, sua pesquisa passa a se debruçar sobre a luminosidade, em composições abstratas, em que a gestualidade expressiva vai dando espaço à geometria e às cores claras e transparentes. O mais interessado na arquitetura da pintura dos membros da Casa 7, Miguez desenvolve sua pesquisa articulando a potência arquitetônica de representação, até produzir uma pintura literalmente tridimensional.
Nos anos 2000, sua prática se manifesta em instalações e objetos que permitem uma maior interação do espectador. Neste período, a linguagem da pintura e sua natureza planar aparece tensionada pela presença de saliências geométricas no quadro, em uma referência à tradição brasileira do objeto ativo o dos sarrafos. Se define assim o campo mais emblemático da obra de Miguez até hoje: a ativação do espaço de representação através da representação do espaço. Em alguns trabalhos, Miguez contrapõe linhas de perspectiva com superfícies planares, incluindo palavras e letreiros, que servem como indicativos auto reflexivos, chaves de interpretação para a própria pintura, como pode ser visto nas obras Um segundo quase nunca (2014) e Pó (2012).
A relação entre espacialidade, geometria e cor tem sido explorada através de formatos menores, o que originou a série Atalhos. Mais do que o nome de uma série, Atalhos é um conceito norteador da prática de Miguez. “Atalhos permite a junção de trabalhos formando sentenças. Dependendo da vizinhança, eles ganham, inclusive, outro sentido. Essa é a ideia do atalho, a passagem de um campo referencial a outro que se dá na criação desses conjuntos propondo possivelmente novos sentidos”, revela o artista.
A partir dessa série, o artista tem desenvolvido alguns desdobramentos: parte delas consistem em releituras de obras de mestres pré-renascentistas, como Giotto, Fra Angelico, Sasetta e Piero della Francesca, pioneiros no domínio da espacialidade pictórica ocidental, da perspectiva e do ilusionismo no campo da representação a partir do Século XIII. Ao revisitar os antigos mestres, Miguez remove os episódios narrativos, focando nas geometrias e espacialidades presentes nas composições originais: o interesse nos ‘primitivos’ da pintura ocidental serve para revelar a estrutura “primal” da pintura como espaço de representação. Parte deste corpo de trabalho, revelador da poética do artista, tem sido o interesse de Miguez por estender, aos Atalhos baseados em primitivos italianos, as releituras, em escalas diferentes, à princípio monumentais, de trechos de composições do artista ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, conhecido como o “primitivo”, o “outsider’’ vernáculo.
Mais recentemente, em 2024, o artista realizou uma viagem para as cidades históricas de São Luís e Alcântara, ambas no Maranhão, no Norte do Brasil, que acabou por culminar na série Maranhão, formada por composições nas quais representa fachadas e interiores das construções vernaculares presentes nas ruas da cidade: “o que me chamou atenção nessas construções foi o fato de boa parte delas estarem abandonadas, algumas em ruínas. Isso fazia com que os componentes arquitetônicos, como platibandas, fachadas e interiores, ganhassem ainda mais destaque”. Se em trabalhos anteriores Miguez usa como ponto de partida a releitura de pinturas históricas, aqui a base é uma arquitetura real, observada diretamente da cidade.
O interesse de Miguez pela dimensão arquitetônica da pintura –pela sua capacidade para representar(se) estruturalmente – se traduz em obras maiores como Planta #2 (2019) e nos trabalhos Sem título realizados em 2023 e Sem título (Casa Ohtake), de 2024. Esta última, inspirada na sala de estar da residência da artista nipo-brasileira Tomie Ohtake (1913–2015), projeto emblemático do brutalismo paulistano assinado por Ruy Ohtake. Assim a obra serve novamente como chave auto reflexiva da poética de Miguez enquanto a pintura encarna a dimensão projetiva de uma arquitetura real.
Outra ramificação do trabalho de Miguez presente também na exposição consiste em experimentos que o artista executou a partir da planificação de caixas de papel: por meio dos esquemas por elas obtidos, Miguez passou a observar a estrutura combinatória ali presente, as regras que compunham o conjunto e as exceções sugeridas por essas regras, por meio das quais o trabalho foi se desdobrando em uma série de possíveis composições e novos arranjos formais e cromáticos. Embora inicialmente esse conjunto fosse desenvolvido em pequenos formatos, nos desdobramentos mais recentes da série, Miguez vem experimentando dimensões maiores, criando assim obras que serão apresentadas de maneira inédita na mostra, capazes de evocar a tradição moderna de abstrações baseadas em padrões têxteis e vestimentais, de Matisse a Franz Erhard Walther. Por conta do emprego da cera de abelha, realizado em boa parte desses trabalhos, as pinturas de Miguez acabam adquirindo uma “fisicalidade” muito específica, ganhando uma consistência similar a de um afresco ou pintura mural, o que resulta com que a faktura das composições faça ressonância, quase de forma tautológica, com a questão arquitetônica que as informa poeticamente.