Escrever sobre relações entre a escola e a família é um tema delicado, mas necessário. São tantas as nuances que podem ser abarcadas nesta reflexão, que já inicio me desculpando por não apresentar aqui a complexidade dessa trama da maneira que você, leitor, a vivencia. Minhas reflexões aqui relatadas mostrarão, como diria o saudoso Carlos Drummond de Andrade, a minha miopia: a maneira única como cada um de nós interpreta uma dada situação, sempre considerando parte do cenário, nunca sua totalidade.

Com a sutileza dos grandes artistas Drummond1 por meio do poema *Verdade * retratou um dos grandes dilemas da convivência humana, destacando o fato de que cada pessoa consegue ver apenas uma fração do complexo conjunto, cuja interpretação é baseada nas próprias, e ilusórias, experiências já vivenciadas.

As escolas constituem-se como uma das instituições que mais retratam as complexidades dos relacionamentos humanos. São vários os profissionais, várias as famílias e inúmeros os educandos que trazem à escola uma vasta gama de ser, de sentir, de agir, tornando o contexto escolar dinâmico e complexo. Dia após dia cada um desses atores vivencia a escola reconhecendo apenas as suas perspectivas, fato que torna a convivência um desafio a todos e pode ofuscar um dos maiores objetivos da escola: estimular a formação de valores necessários para a vida em sociedade.

Minha miopia frente à escola contempla uma complexidade que muitas vezes arde no centro do abdómen, como uma força que busca sair, levando a toda parte aquilo que sinto, misturado com o que penso. Como filha de professora, hoje aposentada, cresci sentindo como a relação escola e família era uma joia valorizada por ambas as partes. As famílias apostavam na escola como a única maneira de proporcionar aos seus filhos a ascensão social, uma condição de trabalho e de vida melhor do que a por elas vivenciadas. Os professores buscavam entender o porquê das ações e reações de seus educandos, reconhecendo que crianças e jovens chegavam às escolas com toda a bagagem que traziam de suas casas: alguns bem-alimentados, outros com fome; alguns seguros e conscientes de si mesmos, outros com medo, às margens da ideal vida comunitária a todos ilusoriamente prometidas.

Como educadora, tive a honra de trabalhar em algumas instituições de ensino dividindo o cotidiano com pessoas, não apenas professores e estudantes. Pessoas que chegavam à escola com suas ânsias e inquietudes, motivações e ambições. O fazer docente não é algo mecânico cujo material didático contempla de maneira única; o fazer docente é permeado pelo sentir. Sentir-se como pessoa, sentir-se como professor que chega à escola com seus desassossegos e necessita atuar como guia afim de iluminar o desabrochar das jovens gerações; sentir-se como uma escuta ao educando que, muitas vezes esconde fragilidades mascaradas por comportamentos considerados inadequados ao aprender e ao conviver escolar.

Como mãe de duas meninas frequentadoras do ensino fundamental sinto um redemoinho, no qual emoção e conhecimento se entreveram intrinsecamente. Não consigo ser mãe, sem ser educadora e vice-versa. O tema educacional faz parte de nossos jantares, quase sempre iniciados com o relato das meninas sobre o dia escolar, mas que terminam analisados, buscando estimula-las a refletir sobre a perspectiva do outro, seja ele o professor ou o colega de classe. Mas, óbvio que, algumas vezes tenho que segurar a leoa dentro de mim: respiro fundo e conto meia centena para controlar minhas emoções e não sair defendendo minhas crias como se fossem as únicas corretas e os demais vastamente equivocados. São sobre esses momentos que hoje quero refletir.

Há algum tempo uma conhecida compartilhou uma situação ocorrida com seu filho, que por algum motivo não estava realizando as tarefas de estudo em casa, tampouco na escola. Quando a professora convocou a mãe para uma reunião a fim de discutir o caso, esta, ao invés de agradecer a preocupação da professora, soltou os cachorros, queixando-se de que a professora havia esperado três semanas antes de estabelecer contato com mãe. Essa conhecida continuou com seu relato, dizendo que, como advogada, ela sempre saia em defesa de seus filhos, nunca assumia frente a escola que eles estavam incorretos, que posteriormente em casa conversava com os filhos e acertava as coisas.

Situações semelhantes são relatadas em grupos de WhatsApp que integro, sugerindo uma rivalidade entre família e escola. Lembro-me de uma situação em que houve um equívoco quanto a data de uma prova de matemática: para as famílias a prova havia sido divulgada para uma terça-feira, mas para os estudantes para uma segunda-feira.

A professora responsável comunicou aos estudantes enfaticamente que a prova seria na segunda-feira, orientou-os a anotarem nas agendas. Curiosamente, um pouco mais da metade da classe anotou a data correta e se preparou adequadamente para a prova; a outra parte não o fez. Eram estudantes do sexto ano do ensino fundamental, fato que, para mim, os tornaria aptos a se responsabilizarem por anotar as próprias tarefas e provas, apesar do equívoco de divulgação cometido. No entanto, diante do despreparo de alguns alunos, um pai levantou a voz e partiu para a defesa de sua filha, que se sentia injustiçada por não ter se preparado bem para a prova.

Depois de alguns emails queixosos enviados para a coordenação pedagógica da escola, e de várias mensagens raivosas compartilhadas por uma minoria de responsáveis no chat da turma, a escola decide anular a dita prova. Ora, tal decisão levou outros responsáveis a se manifestarem, sinalizando para a escola que a decisão tomada parecia punir os estudantes que se autorregularam adequadamente, escutaram as orientações da professora, anotaram e se preparam para a prova a ser realizada de maneira correta. Concordo que seja necessário cuidar para que as informações divulgadas pelas escolas sejam corretas, sendo necessário evitar divulgações desencontradas. Contudo, para mim, curioso foi o fato de que a postura utilizada pelos pais dos estudantes que se sentiram penalizados com a prova anulada foi respeitosa: houve questionamento e argumentação, mas não insultos, como os utilizados pelos responsáveis que pediram a anulação da prova.

Esses relatos, me fazem lembrar de inúmeras situações dos tempos em que atuava como coordenadora pedagógica e recebia queixas de familiares quanto ao fazer docente. Algumas, sim, eram cabíveis e expressadas de maneira ética, cujo respeito era sentido no ar, trazendo apenas a manifestação da insatisfação com o ocorrido. Outras, nem tanto: os desdéns utilizados nos relatos pareciam sinalizar que os educadores estavam sempre errados e torcendo para que nossos filhos se dessem mal. Eu e minha miopia não conseguimos enxergar essas desavenças.

Recentemente, assisti ao filme Os Rejeitados cuja temática educacional ancora o cenário ideal para se refletir sobre as histórias pessoais e o modo como nossas visões de mundo nos impulsionam em nossas relações. Eram estudantes, familiares, professores e outros profissionais que atuam na escola os personagens desse filme, no qual a miopia definida por Drummond de Andrade é tão bem retratada. À medida que professores, profissionais e estudantes vão se conhecendo melhor, tendo acesso às experiências passadas que construíram e tornaram possível a formação de cada um deles, repletos de histórias, nem sempre fáceis ou felizes, as relações no presente se permeiam por respeito-mútuo. Talvez seja um pouco utópico pensar que o retratado no filme pudesse ser vivenciado na prática escolar, no entanto, esse pode ser um dos valores das artes: retratar o ideal como se fosse o real.

Segundo pesquisas2, a realidade escolar é melhor vivenciada quando há uma forte percepção de que o coletivo escolar é capaz. Essa crença impacta positivamente tanto na aprendizagem e resultados em avaliações externas, quanto na convivência entre os estudantes, professores e familiares, diminuindo o bullying e favorecendo o desenvolvimento das competências socioemocionais. Agora, por traz da crença de eficácia coletiva há uma percepção de valor e respeito a cada uma das pessoas que integram a escola: somente se pode valorizar o coletivo quando se valorizam as partes que o compõe. Não há valor sem respeito. Não há êxito sem respeito. Não há liberdade de expressão sem respeito-mútuo. Na escola, como na vida, o lema “juntos somos mais fortes” é fato. Que possamos escutar as partes para conhecer o todo, ampliando, assim, nossa miopia, nossa visão sobre as pessoas e as relações vivenciadas nas escolas.

Notas

1 Andrade, C. D. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
2 Casanova, Daniela Couto Guerreiro (2019). Diferenças entre crenças de eficácia coletiva e pessoal em escolas púbicas. TSC em foco. 8. 6-17.