No artigo anterior debrucei-me sobre O Enigma da Poesia, uma das seis palestras proferidas por Jorge Luis Borges, no âmbito do curso Norton, em Harvard. Esse exercício de escrita despertou-me, de imediato, para a possibilidade de estabelecer um diálogo entre a dita palestra e alguns textos de outros poetas, ensaístas e romancistas que partilham a visão do mestre argentino acerca do ofício poético.

Mas ainda antes de nos determos sobre essas sugestões de leitura, urge recuperar certos pontos basilares da primeira das palestras Norton, designadamente a enfatização do caráter indizível da experiência poética. Pois bem, segundo Borges, para que a poesia suceda o leitor deve ser tomado por uma sensação que não seja totalmente possível de transpor por palavras. Assim, para além de qualquer esforço teórico, é indispensável que o leitor possua “paixão” e “alegria”, pois a palavra poética não se esgota no seu significado ou compreensão, alcançando uma dimensão que é também do domínio do “corpo”, da “carne” e do “sangue”.

Tal como mencionei no artigo anterior, é nesta palestra que Borges recorda a experiência transformadora de ter ouvido, durante a infância, um poema de Keats declamado pelo pai. Embora não tenha compreendido o alcance das palavras, relembra ter sentido que qualquer coisa lhe acontecia não apenas à inteligência, mas a todo o seu ser. Esta “real emoção” – como lhe chamou – perdurou durante décadas, tendo sido responsável por lhe revelar que a poesia não consiste num mero meio de comunicação. Com efeito, a evocação de tal memória elucida-nos quanto ao caráter ininteligível (e, por conseguinte, indizível) da poesia, provando-nos que a mesma nunca se extingue; pelo contrário, o poema renova-se a cada leitura: “Por isso podemos dizer que a poesia é uma experiência nova a cada vez. De cada vez que leio um poema, sucede a experiência. E isso é poesia”.

Diria que outro dos aspetos fulcrais desta palestra é a visão de Borges acerca dos compêndios de estética, os quais ousa descrever como “livros de astrónomos que nunca olharam para as estrelas”, uma vez que abordam a poesia do ponto de vista de uma tarefa; aliás, cita a obra de Benedetto Croce sobre estética, para rejeitar a sua definição de que a poesia e a linguagem consistem numa expressão: “Portanto, recebemos essa definição com todo o respeito e a seguir voltamo-nos para outra coisa. Voltamos à poesia; voltamos à vida”.

Não será, decerto, uma surpresa o facto de inúmeros escritores comungarem desta mesma conceção da palavra poética, isto é, de uma visão apaixonada sobre a poesia, que nos leva a crer que a mesma resulta da relação entre o sentir-pensar. Ora, tendo em vista explorar esse possível diálogo entre Jorge Luis Borges e alguns outros autores, proponho um modesto exercício de transtextualidade, através das seguintes citações:

  • Não sei nada, Ruy Belo

“Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. [...] A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar – e de se ficar – pelas palavras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei.”

  • Arte Poética, Fernando Guimarães

“Desenho com este poema uma árvore. Estas são
as raízes. Mas o poema nascerá livre e diferente.”

  • Literatura, Defesa do Atrito, Silvina Rodrigues Lopes

“Há textos face aos quais todas as estratégias de leitura se revelam insuficientes. E isso é inseparável do facto de, nessa mesma leitura, elas serem sujeitas a alterações, inflexões ou desvios. É isso que define uma relação, o não estar determinada de fora, mas valer como tal, na sua complexidade. Admiti-lo é admitir que é a própria relação que faz vacilar a distinção entre leituras corretas e leituras erróneas e que o segredo ou vazio que suspende a apropriação ou uso deste tipo de textos (a que chamamos literatura) é uma força ativa, desencadeadora do sentir-pensar”.

  • Lavoisier, Carlos de Oliveira

“Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.”

  • Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Rilke

“Não posso pronunciar-me sobre a qualidade dos seus versos, pois sou avesso a qualquer intenção crítica. Nada está mais longe de tocar numa obra de arte do que palavras críticas: delas resultam apenas mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas não são tão apreensíveis nem tão dizíveis como nos querem fazer crer; quase todos os eventos são inefáveis, desenrolam-se num espaço onde as palavras nunca entram, e os mais inefáveis entre eles são as obras de arte, existências misteriosas cuja vida, ao lado da nossa que se perde, perdura."

"E aproveito desde já para lhe fazer o seguinte pedido: leia trabalhos estéticos e críticos o menos possível [...]. A obra de arte é de uma solidão sem fim, e nada está mais longe de tocá-la do que a crítica. Só o amor poderá compreender e sustentar e fazer justiça a uma obra de arte.”

  • A Arte como Processo, Viktor Chklovski

“A imagem poética é um dos meios de criar uma impressão máxima”.

“A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização dos objetos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da perceção. O ato de perceção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objeto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.”

Sendo certo que diversos outros textos escapam a estas menções, as sugestões acima pretendem tão-só constituir-se como algumas propostas de leitura de um universo muito mais vasto de referências – como não poderia deixar de ser (pensemos, por exemplo, na Biblioteca de Babel borgesiana). Neste artigo em que recuperamos a portentosa palestra proferida por Jorge Luis Borges, recordo-me ainda inevitavelmente de Manuel António Pina, o poeta que nos ensinou que “nada no poema é impossível e tudo é possível”.