No percurso [A] LA FLEUR DE LA PEAU de Paulo Nazareth é inevitável não retomar a metáfora de abismo assinalada pelo escritor martinicano Édouard Glissant em seu texto Poética da Relação. A imagem da barca atua como um lugar de exílio para corpos negros rumo ao desconhecido. Logo, o primeiro abismo seria quando se adentra a barca. O segundo seria o abismo durante a travessia pelo mar. Kalunga Grande. O terceiro abismo é a imagem invertida de fugidias memórias onde são tecidos outros enraizamentos conduzidos em redes de aprendizagem. Rizoma. O conhecimento partilhado dessa experiência do exílio à errância, onde toda identidade se prolonga numa relação com o Outro. Paulo Sérgio da Silva. Paulo da Silva. Sérgio da Silva. Ser da Silva. Paulo Nazareth. Nazareth Cassiano de Jesus. A Mãe de sua Mãe. Ana Gonçalves da Silva. A Mãe de sua Irmã. Ana Maria da Silva. A Avó, a Mãe, a Irmã e a Maternagem. O seu Égun ou Égúngún para povos de matriz Yorùbá. Ou, ainda, seu Marét para povos indígenas Borun do Vale do Rio Doce. O espírito ancestral. Nazareth torna-se também materialidade e imaterialidade da arte. Trânsito entre mundos. Trânsito entre tempos. O ato de ser ambulante assim como panfletar reafirma o lugar de conduta estética, performance expandida, acontecimento geracional. Vender sabão caseiro com gordura de frango, doce, limão, abacate, urucum. Distribuir panfletos-santinhos-volantes de dentistas, planos de saúde, casas de santo em Belo Horizonte (Minas Gerais). Atividades laborais que o artista já desempenhou.
A jornada apresenta uma dimensão autoetnográfica onde o lugar tanto da autobiografia quanto da etnografia lança-nos para uma relação de simetria concernente entre o Mesmo versus o Outro, Subjetividade versus Alteridade, Individual versus Coletivo, Sujeito versus Objeto. Por conseguinte, há o espelhamento desse acontecimento geracional pela ação de caminhar de sua mãe Ana e sua irmã Ana que peregrinam por trajetos emblemáticos de poder como metáfora da Mãe África e a Diáspora. Este trajeto perpassa por lugares como o Musée de l'Homme (França) e os presídios de segurança máxima La Santé (França) e Saint-Gilles (Bélgica). Uma performance ritual amalgamando aspectos referentes ao sagrado e o profano quando sua mãe Ana nesta peregrinação ora pelas almas aflitas vitimadas pelo genocídio. Este ato expugna violências coloniais que foram impostas pelo rei belga Leopoldo II ao se apropriar do Congo. Na mesma medida, os panfletos instauram uma estética de emergência nas palavras do próprio artista: arrebentar a lapide y atravessar a garganta do rei com a flecha embebida em veneno da RAN OURO. ----- com flecha do povo precolombiano EMBERA::: matar o rei antes que este chegue ao CONGO.
Dentro desse contexto performativo, há a série os Santos de Minha Mãe produzidos em blocos de resinas que possuem em seu interior alimentos com nomes de santos que retomam os votos de proteção familiar e seus amuletos para resguardar o corpo de qualquer perigo. Recobra, também, nesse ínterim diferentes modos de resistência de povos escravizados como é o caso das Irmandades negras. Ou, ainda, o cristianismo presente nas Folias de Reis, Guarda de Congado e Moçambique em Minas Gerais. Refere-se tanto a uma história que reflete tecnologias de agricultura atreladas a uma lógica colonial de mercadoria quanto à comercialização da fé. Apresenta em seu discurso visual o colecionismo na arte como prática crítica. Os processos de ordenação destes objetos remetem às coleções dos gabinetes de curiosidades que, posteriormente, deram origem aos museus etnográficos, tangentes aos valores sobre estética, arte e ciência.
A invenção da fotografia prenunciava para o campo da antropologia o seu uso científico nos estudos sobre evolução, antropometria e cultura material. Consequentemente, isto implicou na seleção, classificação e hierarquização do Outro cultural. Podem-se citar os cinco daguerreótipos de uma mulher e um jovem borun captados por E. Thiesson em Paris (1844) e pertencentes ao Musée de l'Homme. Os registros destes corpos tornados desumanizados e postos em exposição a partir do olhar mecânico são confrontados pelo olhar humano de sua mãe. Este olhar que não é somente de Ana, mas é amalgamado com o de Paulo, resignifica o lugar da ciência, extermínio e escravização na reelaboração da subjetividade dessas duas pessoas fotografadas numa aproximação de uma história familiar. O sentido de exposição neste percurso torna-se polissêmico quando é associado aos vazios e enfrentamentos nas diferentes experiências cotidianas de corpos hegemonizados.
O lugar da tecnologia como política de destruição e restituição de narrativas aparecem friccionados numa outra série a partir da captação fotográfica e impressão preto e branco em papel algodão de imagens oriundas da internet. Esta materialidade referenda-se aos processos de tecnologia agrícola a despeito da divisão social do trabalho. E, por sua vez, às rotas comerciais do algodão dentro de uma história colonial que implica em ciência transplantada na diáspora por povos africanos nas colônias. Capta-se a alma de anônimos fotografados num mesmo instante em que estas imagens se diluem também pelo esvanecimento de uma memória social coletiva. É uma espécie de sombra que projeta uma ausência, mas paradoxalmente desvela uma presença que é uma anterioridade em relação à Ana e ao Paulo. Os registros fotográficos são interferidos com círculos brancos feitos com efun (giz geralmente utilizado em rituais de matriz africana) que empresta da função litúrgica o reestabelecimento do equilíbrio ao recobrar estas narrativas hegemonizadas numa outra escrita.
Num outro trabalho, Paulo aborda sobre a tecnologia política de domínio sobre os corpos quando coloca em questão o encarceramento de homens negros em instituições penais. Atuam como engrenagem de exercício de violência como um apagamento programado e seletivo dessas autorias. Estas relações aparecem em letreiros com nomes de prisões de segurança máxima contrapondo a noção de metrópole e colônia como em La Santé (França), Saint-Gilles (Bélgica) e Kabare (Congo). Sobremaneira, a instituição penal em África não era uma instituição nativa, mas resquícios coloniais de controle desses corpos. O crime torna-se um produto negro possível de ser mercantilizado. Contudo, a experiência do caminhar como forma estética aparece na performance (Mendes Wood DM Brussels, 24 de Abril de 2019) onde corpos anônimos de imigrantes não brancos perfuram um saco de farinha de trigo e reorganizam este pó branco na forma de círculos pela varredura. Entrelaça-se o objeto de arte à vida cotidiana na brutalidade do círculo branco. A ordenação da geometria concretista. O ritual diário manifesto em arte contemporânea. O círculo branco associado ao efun como uma liturgia reorganizadora de uma história embaralhada de violências e traumas coloniais.
As proposições artísticas desenham um percurso no qual as condutas estéticas elaboram epistemologias de urgências para opugnar marcas de cartografias coloniais. Isto aparece na dualidade do círculo que retoma o pensamento matemático na geometria em África antiga e na cultura islâmica a partir do século VIII. O círculo na liturgia para povos de matriz africana. Em contraposição, a racionalidade do círculo da arte concretista na arte ocidental. O modernismo. O pós-modernismo. O gesto performático e laboral de formar o círculo. O contexto político do capitalismo neoliberal que perpetua desigualdades. O retesamento destas cartografias e a reafirmação de escritas comunitárias são reelaborados no desmantelamento de armadilhas coloniais a partir de tecnologias de controle e agenciamento de indivíduos articulando o apagamento programado de coletividades.