Naufus Ramírez-Figueroa (1978, Cidade da Guatemala) cria imagens oníricas que se valem da literatura, do folclore, da magia e das memórias infantis. Apesar de lúdico, seu trabalho alude a eventos trágicos ou traumáticos da história atual da Guatemala, em particular, os impactos da guerra civil (1960–1996). As performances e esculturas de Ramírez-Figueroa fazem referência ao corpo humano e a rituais culturais específicos. Elas exploram relações sociais, colonialismo, imigração, censura e identidade, mas sempre sob um filtro de imaginação e humor e com uma potente linguagem visual.
Para sua exposição na Mendes Wood DM Bruxelas, o artista continua a desvendar seu passado como refugiado guatemalteco no México e no Canadá durante os anos 1980. Neste processo, o artista enfatiza uma variedade de formas e narrativas, sendo que nem todas estão ligadas ao seu contexto pessoal. A ideia e a história de carregar bens nas costas ocupam um lugar central. Nas Américas, o cacaxte é o método tradicional para esse fim – muito anterior à invasão europeia – e, ainda hoje, é o meio de transporte mais barato para as populações nativas da América Latina. No século XIX, os dominadores europeus da região chegaram a explorar esse método em suas buscas por sítios arqueológicos e afins, usando os habitantes locais como seus transportadores. Carregar bens dessa maneira é, portanto, um tabu na Guatemala contemporânea devido à sua conotação de opressão colonial. Carregar coisas nas costas é algo encontrado em diferentes culturas, inclusive na Europa, nas mochilas militares, por exemplo; nos Estados Unidos, onde colonos levavam às costas seus pertences na busca por novas terras; e na China, onde grandes quantidades de chá eram transportadas nas costas das pessoas pela antiga Rota do Chá e Cavalo. Mais recentemente, refugiados têm contado com suas mochilas e grandes bolsas para carregar seus bens pessoais.
Nesta exposição, Ramírez-Figueroa aborda o “carregar” e a “mochila” como um fardo físico, como uma carga com identidade própria. As esculturas assumem formas que evocam objetos portáteis, tais como vasos, que combinam elementos de diferentes culturas. Realidade e ficção, história e fantasia, figuração e abstração aparecem interligadas nessas peças autônomas.
A mostra em Bruxelas apresenta três conjuntos de trabalhos. Cacaxte #1 (M-Museum) foi realizada durante uma residência na Bélgica no final de 2018. É, ao mesmo tempo, um trabalho escultórico e uma peça usada em uma performance ao vivo. A armação de mochila de metal se refere aos cacaxtes, usados na Guatemala para transportar itens frágeis de cerâmica. A estrutura se parece com um suporte com fitas para amarrar objetos. Cerca de 25 pequenas esculturas de isopor – um material usado principalmente para acessórios cenográficos – estão atreladas à armação. Com sua superfície pintada e envernizada em azul, esses objetos parecem ser feitos de uma faiança ou porcelana delicada. As esculturas individuais sugerem uma série de objetos de arte de diferentes eras e culturas: esculturas maias ao lado de artefatos muçulmanos medievais da Espanha; estatuetas e máscaras de diferentes países, tais como Nigéria, Egito, Grécia, China e Guatemala. Cada um desses itens foi encontrado pelo artista em coleções públicas ou privadas e copiados por ele de modo livre. Juntos, eles oferecem um levantamento eclético de objetos culturais de vários museus proeminentes, entrelaçando diferentes identidades e culturas. Apenas algumas poucas peças valiosas podem ser visitadas em museus públicos da Guatemala. As obras mais interessantes estão no exterior ou em coleções privadas, fazendo com que seja difícil para os guatemaltecos desenvolverem um senso de identidade, de pertencimento a uma história cultural.
Para a recente performance, realizada em novembro, no M-Museum em Leuven, Ramírez-Figueroa caminhou pelas galerias com essa armação nas costas que vinha carregada de esculturas. Quando chegou ao último andar do museu, desamarrou as fitas e espalhou os objetos pelo espaço. A performance, que foi documentada e editada, pode ser assistida na Mendes Wood DM Bruxelas como trabalho em vídeo.
Há também outras seis esculturas que exploram, igualmente, a noção de “carregar”. Com base em tradições culturais de diferentes países, nos quais as pessoas amarram cargas pesadas às suas costas, o artista está se referindo, acima de tudo, aos carregadores de água, apresentando esculturas derivadas de grandes vasos ou jarras, incluindo fios para amarrá-las às costas. Além de mais livre e experimental, a forma desses vasos é antropomórfica, sugerindo formatos corporais, naturais, redondos. Esses objetos orgânicos trazem algumas semelhanças formais com as esculturas suspensas de Third Lung [Terceiro pulmão], exibida na Bienal de Veneza de 2017. Aqui, a superfície brilhante e colorida as retira do contexto natural, imputando-lhes algo de artificial e contemporâneo. Um elemento notável no espaço é uma escultura alta em forma de perna. Uma abertura mostra um corte ou uma ferida azul, sugerindo que há água dentro do corpo. Essa obra alude à tensão ou harmonia entre a natureza e os seres humanos. A água ou a cor azul possuem diferentes significados na obra de Ramírez-Figueroa, refletindo tanto a história de seu país natal quanto suas próprias experiências físicas. Para o artista, as cores vivas também rementem a obras de arte medievais, que eram muitas vezes policromadas, mas que perderam sua cor com o tempo.
Por fim, Naufus Ramírez-Figueroa também apresenta cinco trabalhos de parede, inéditos, que ocupam o meio-termo entre pintura e relevo. Seu exterior, com ranhuras, lembra os vasos com superfícies rugosas, como se as peças tivessem uma certa pele ou camada protetora.
O artista começou a trabalhar recentemente nessa série de relevos. O desenho na superfície era composto, no início, de padrões tradicionais que remetiam a motivos convencionais latino-americanos. Posteriormente, sua abordagem se tornou mais livre e experimental e o artista passou a brincar com a ideia de geometria, aplicando mais padrões de seu próprio design, cada um de uma cor única e diferente. Padrões também são recorrentes em suas performances mais antigas, como uma espécie de contrato com o corpo físico. Em Print of Sleep [Impressão do sono] (2016), por exemplo, a grade de uma cama é desenhada no corpo do performer com tinta preta, enquanto em Mimesis of Mimesis [Mimese da mimese] (2016), o artista usa uma grade elástica. Outro elemento em jogo nessas obras de parede é a interação entre a fisicalidade da extensão do plano e a abordagem abstrata. Juntos nesse espaço, as esculturas e os relevos compõem uma paisagem sobreposta.