O falecido Carl Sagan colocou nossa existência em perspectiva quando pronunciou sua famosa frase: somos poeira das estrelas. Refletindo sobre seu lugar no universo, Otobong Nkanga declarou: Nasci neste planeta, estava aqui antes de chegar e espero continuar aqui depois de partir. Sei que meus restos mortais serão pequenas partículas que farão parte deste planeta. Não posso me dissociar do ambiente em que vivo porque sou parte dele em todos os sentidos, desde o ar que respiro até a comida que ingiro.[1] Somos todos parte do estado de luta e transição supostamente infinito em que vive nosso planeta, conforme os átomos do passado e do presente se fundem, se dividem e são reconfigurados no futuro para além de nossa existência terrena. Parte do aparato de poder de várias civilizações humanas tem sido elevar a humanidade a algo separado da natureza, em uma tentativa de melhorar nossa condição material por meio da degradação de nosso contexto material. É interessante que várias crenças defendam que espíritos malignos habitam o submundo. Será de estranhar, então, que violência, morte e dor jorram do centro da Terra como resultado dos processos de extração e exploração do planeta e estão, portanto, integrados na maioria dos materiais que inquestionavelmente aceitamos como parte de nossas realidades humanas?
A prática de Nkanga visa estabelecer paralelos que teçam uma visão geral da nossa existência interconectada. Ela o faz por meio de performance, escultura, pintura, gravura, fotografia e vídeo, explorando as complexas relações entre ciência, política, emoção e memória que usamos para tentar encontrar nosso rumo no universo, neste planeta, em nosso lugar, com os outros e com nós mesmos. Seja no âmbito emocional, político ou ambiental, nós e o planeta inteiro estamos em um constante estado de transição, uma condição que inspirou o título da exposição inaugural de Nkanga na Mendes Wood DM em Bruxelas.
Nkanga cria zonas generativas de desconforto. Em uma nova série de desenhos, um corpo humano em sua forma completa se transforma em fragmentos aparentemente pós-humanos cada vez mais desmaterializados, entrelaçados com porções de terra também fragmentadas. Além das carregadas imagens centrais desses desenhos, tons carnais preparam o papel e uma faixa de cor reminiscente de uma paleta usada para corrigir cor domina o lado esquerdo do trabalho. Parece que tiras de fita fixam as imagens centrais às superfícies calibradoras embaixo delas. É uma ilusão pintada que cimenta essas cenas surreais em nosso plano real, criando um sentido de que são parte de uma visão mais geral que ainda estamos por ver. A sensação de que esses desenhos podem não ser finais abre espaço para o tempo e para que a imaginação acrescente novos significados a essas poderosas obras de arte.
O trabalho de Nkanga nos incita a ir além daquilo que cremos saber e entender, reconectando os circuitos de nosso pensamento. No desenho Escape [Fuga] (2018), uma serena figura feminina segura um conjunto de globos suspensos e pedaços de terra removida, presos por uma corda que ela agarra com firmeza em uma das mãos. Seu braço livre alcança uma luva em uma dimensão que não conseguimos ver. Outro plano da imagem apresenta uma ecosfera exuberante, verde e repleta de vida. Será que a artista acessa outra dimensão livre de destruição ambiental, mesmo que exista apenas em sua mente? Em Reconciliation [Reconciliação] (2018), uma figura mutante incompleta, feita de pedaços fragmentados de corpos, estende-se por vários planos, em busca de um senso de equilíbrio, usando fragmentos de terra como contrapesos. Reconciliação é o processo de passar a se sentir confortável com uma situação indesejada ou difícil. Nkanga nasceu e cresceu na Nigéria e ainda mantém vínculos fortes com sua cultura e terra natal, na África Ocidental, enquanto vive e trabalha na Antuérpia. Reconciliation é um trabalho muito pessoal: uma tentativa de encontrar um sentido de lar e pertencimento em diferentes lugares, ultrapassando divisões geográficas, raciais e de gênero, uma tentativa de manter e de fazer crescer raízes em um mundo cada vez mais fragmentado e de ter o poder de ser uma contradição viva e de autodefinir identidade e transição em novos estados de ser.
Assim como pessoas e materiais transitam entre vários estados, as obras de Nkanga crescem umas com as outras, já que fragmentos de obras passadas se transformam em novos trabalhos. Coup d'Etat [Golpe de Estado] (2003/2018), uma escultura suspensa composta por uma agulha monumental presa por um fio tingido à mão, emergiu como parte de uma performance presenciada apenas pela artista e pelo fotógrafo, realizada como apresentação final de sua residência na Rijksakademie, na Holanda, em 2003. Posteriormente, foi usada em outros trabalhos de instalação e vídeo, tais como Sustained Suture [Sutura Sustentada] (2003) e Surgical Hit [Golpe Cirúrgico] (2003). Nkanga criou um grupo de agulhas – que podem ser vistas como instrumentos de cura ou de violência – por meio de um processo de aquecer e bater aço inoxidável, esculpindo essas formas no auge da era de George W. Bush, que anunciava a invasão do Iraque. O termo choque cirúrgico foi empregado na época para descrever precisamente a destruição de alvos, pervertendo os ideais hipocráticos por trás do campo da cirurgia. Na entrada da exposição, a artista examina a dualidade da agulha e sua capacidade de furar, cortar, juntar e emaranhar, bem como as suas funções como instrumento de transição. Em contraste com o aço estéril e brilhante, uma corda orgânica em dois tons de ferrugem serpenteia a agulha e costura o espaço expositivo, evocando também o fio cor de laranja que perpassa seus desenhos e as superfícies das tapeçarias da série Steel to Rust [Do aço à ferrugem].
Nkanga começou a trabalhar com a série Steel to Rust treze anos após ter criado a forma de agulha que vemos em Coup d’Etat, no início da ascensão política de Donald Trump. Ela faz uma reflexão sobre a corrosão da ordem política, industrial e social do mundo. Sem cuidado constante, todos os materiais começam a oxidar. A agulha de aço inox de Coup d’Etat trata dos poderes, ao mesmo tempo, generativos e destrutivos encontrados na máxima precisão da atenção humana. Ao contrário do aparato gerador de ordem em Coup d’Etat, Steel to Rust habita o espaço da entropia – um fenômeno que pode ser claramente visto no estado de enferrujamento da grande indústria ocidental, conforme as fábricas transferem a produção e o trabalho para países em desenvolvimento e suas máquinas ameaçadoras começam a falhar. Steel to Rust - Calibration [Calibração] (2018) é um trabalho têxtil tecido como uma crônica da situação de corrosão do mundo. É composto de fragmentos de experimentos com tapeçaria anteriores da artista, apresentados em relação a varões de cobre aparentemente puros. Os materiais são carregados de estruturas de poder e histórias que não podemos ver. Nkanga nos ajuda a transformar nossas mentes para que olhemos além de superfícies cintilantes de modo a vivenciar verdades mais profundas, talvez até nos incitando a polir nossas atitudes.