A escolha minuciosa e o manuseio de materiais comunicam, em larga escala, a prática escultórica de Paloma Bosquê. Seus delicados arranjos tridimensionais são resultado de processos empíricos, onde a artista se propõe a atar, moldar e emparelhar elementos de origens diversas, revelando o potencial poético da matéria em transformação e rearranjo.
Para sua primeira exposição individual na Bélgica, Bosquê apresenta novos arranjos – ou acordos – entre materiais que vem investigando há alguns anos e que já fazem parte de seu vocabulário escultórico, tais como latão, chapas de chumbo, feltro artesanal, bronze fundido, carvão, breu, cera de abelha, tripas bovinas costuras, papel artesanal, peneiras de café e lã.
O arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha diz que a função primordial da arquitetura é amparar a imprevisibilidade da vida, e eu diria que, nesse sentido, os trabalhos de Bosquê são contra-arquitetura. Seus projetos não só habitam essa imprevisibilidade, como se valem dela – como o tempo que age na matéria – criando novos sentidos – ou uma nova linguagem – a partir da combinação dos materiais e elementos encontrados.
No linguajar atual de arte contemporânea, é comum descrever que o artista está apresentando um novo conjunto de obras, como se estivesse sempre tirando coelhos da cartola. De fato, as obras exibidas na mostra são novas – no sentido de produzidas recentemente – no entanto, elas aprofundam processos de trabalho já conhecidos e representam desdobramentos de escolhas formais e argumentos forjados pela artista há alguns anos; são o seu Inventário. Com um rigor metodológico singular, Bosquê propõe uma mudança de atitude em relação ao mundo tangível, onde a atenção com que maneja os elementos é diferente da devotada ao próprio corpo – o corpo de trabalho, ou o corpo que trabalha. Sua atuação sobre os materiais é uma negociação entre força e habilidade manual e as respostas que recebe da matéria em movimento.
Os trabalhos de Bosquê são sempre acontecimentos singulares. Ela aborda os fenômenos ao mesmo tempo em que os produz, como se estivesse, a todo momento, buscando apreender o em si das coisas. Um dia quente ou frio pode interferir no ponto de fusão da cera, assim como as marcas de uso em cada um dos esquadros de madeira, que um dia foram usados para fazer papéis artesanais, sinalizam o caminho a ser trespassado pelos espinhos de cacto (Espinhos #4). Embora haja muita técnica e planejamento na prática da artista, há também sempre algo de imprevisível – para além da linguagem e que só o manuseio criterioso revela – que é determinante na forma final do trabalho.
Seus trabalhos são corpos erráticos e de intensa presença, em sua maioria maleáveis, sujeitos a torções e sustentados por apoios revogáveis. Às vezes lembram objetos deixados para trás por tribos nômades ancestrais, ora parecem peles de animais não identificados em meio à serapilheira. Há um fazer acontecer no trabalho de Bosquê que imprime o ritmo do corpo em movimento no ateliê e enuncia o potencial poético e político do gesto e da presença. Tanto as peças ligeiramente modeladas à mão quanto os projetos mais complexos que envolvem meses de trabalhos e assistentes, fogem do argumento da valorização técnica do trabalho manual e do fetiche da mão do artista. Os trabalhos de Bosquê são densos e delicados e, propositalmente, não alardeiam a complexidade de sua realização. Ao contrário do heroísmo e da razão estética moderna, essas obras conhecem e habitam seus conflitos.
A disposição física da artista, além de uma aguda curiosidade pelo que a cerca, são o que dá forma ao que chamei acontecimentos – e aqui há um aparente paradoxo. Se a prática de Bosquê está mais próxima dos fenômenos e das formas orgânicas transitórias, por quê seus títulos aludem à geometria ou ao vocabulário da construção civil (coluna fracionada, delta, ovo com torre, muro...)? Talvez porquê tenham, antes, uma desconfiança permanente – não uma recusa propriamente dita –, aos alicerces da nossa civilização, como se estivesse sempre testando e jogando com eles.
Muitas vezes os trabalhos de Paloma Bosquê parecem muito mais frágeis do que de fato são. Ela precisa tornar os materiais mais resistentes, já que quer deles algo além da maleabilidade. Há, em seus processos particulares, uma suspeita marota da escultura minimalista, onde o peso da matéria e a austeridade da organização são evidentes, se não, cruciais. Ao invés de servir de suporte para uma forma fechada os materiais da artista parecem gerar sua conformação pelo interior – como a lã natural emaranhada com agulhas finas até se tornar um denso tecido capaz de sustentar em suas fibras alguns ovos de cera maciça (Ente-Ninho). Talvez esse seja o melhor exemplo do que chamei de contra-arquitetura: o desejo de habitar, ao mesmo tempo, o dentro e fora da matéria – algo inconcebível à razão ou à geometria euclidiana.
A tentativa inglória de Bosquê de conformar geometricamente materiais orgânicos como a cera de abelha, a tripa de boi ou o breu, nos lembra que a natureza não está a nosso serviço e nos provoca a duvidar de qualquer estrutura tida como estanque. Como as raízes das árvores que irrompem o asfalto das ruas de São Paulo, onde vive, a matéria nem sempre se submete às investidas premeditadas da artista. Apenas os acordos justos entre o que ela quer e o que quer o material perduram. A força do trabalho de Bosquê reside justamente nessa resiliência que leva à uma indistinção hierárquica entre corpo, coisa e mundo. Quando trabalha, toda sua atenção é direcionada ao processo, ao movimento de ordenar os fios em extensão, fundir os blocos de cera e resolver o que fazer com os pedaços de madeira encontrados – mas é na relação com o espaço que a dimensão conceitual e a combinação racional desses trabalhos se tornam mais evidentes.
Nessa exposição, as obras encontram um equilíbrio delicado e transitório por todos os cômodos que ocupam. É como se fizessem parte de um fluxo ininterrupto, onde os volumes não cessam de emitir sinais significantes sem jamais se entregar de todo à compreensão. É impossível não pensar sobre as ressonâncias míticas do emprego do ovo, por exemplo – o símbolo mor da fertilidade entre tantas outras conotações simbólicas – mas tudo em Bosquê conspira contra a decodificação imediata. Seus ovos são apoios, contrapesos e têm o mesmo valor na composição de elementos de carga simbólica menos evidentes. Há uma desconfiança com as definições e categorizações que vêm inscritas e incorporadas no seu próprio processo do trabalho. À Bosquê, interessa tanto o potencial simbólico da tripa de boi quanto a sua durabilidade e resistência como matéria prima, por exemplo. Há uma ética clara em suas escolhas: o mesmo material ordinário que encontramos em mercados públicos para fazer embutidos, ganha, pelas mãos da artista, o aspecto de um tecido nobre (Bandeira com Mastro) – a escatologia do intestino é vertida em experiência estética ou o símbolo oficial sujeito à decomposição – enquanto existe, na mesma medida, como a estrutura que sustenta pesados volumes de metal em balanço, como na obra Delta #2.
Em sua série mais recente, Arranjos Cegos, Bosquê cria pares de estruturas interdependentes (tais como um emaranhado de lã rosa-pálido emparelhado com lençóis de chumbo reutilizados de outras esculturas, uma bola de cera de abelha com breu é suspensa por uma corda feita de tripa de colágeno e pilhas de papel artesanal colados são apoiados sobre blocos de cera). Ao dispor esses elementos sobre uma grande base comum no centro da sala principal da exposição, Bosquê articula uma coreografia de movimentos sinuosos e balanços delicados. A pouca altura da estrutura (cerca de 10 centímetros do chão), faz com que os visitantes tenham de se abaixar para observa-las em detalhe. Ao recusar a hegemonia do ponto de vista do observador, essas esculturas ganham um outro tipo de autonomia, bem diferente da solenidade da escultura no pedestal. Elas parecem respirar, se balançar ou deslizar livres pelo espaço, como que desafiando com graça a sua condição escultórica ou o status de obra de arte stricto-sensu. Essa separação sutil do piso da galeria não propõe distingui-las dos demais objetos do mundo, e sim coloca-las em relação, entre si e com quem as vê.
O crítico brasileiro Ronaldo Britto escreveu a respeito das tranças de chumbo de Tunga: E o que a trança, este ‘corpo’, anseia é justamente manter vivo e presente o drama de seu vir-a-ser, apesar da arte: mas também conseguir ser arte, apesar de tudo. Acredito que os trabalhos de Bosquê também fazem parte desse lugar cintilante. Sua obra reivindica sua presença como acontecimentos contra-retóricos e abertos tanto à linguagem quanto aos fenômenos. Ao mesmo tempo em que essa exposição revela a devoção da artista aos seus materiais e métodos, ela destaca o potencial criativo e político das relações duradouras e que se reinventam sucessivamente.