O mar é o “espaço liso por excelência” – é o que afirmam Gilles Deleuze e Guattari, em Mil Platôs. Esse espaço seria ocupado por acontecimentos, muito mais do que por coisas formadas e já percebidas. No espaço “liso” não há distinção entre fios nem tampouco entrecruzamentos; há apenas um emaranhado de fibras. Já a paisagem, para os mesmos teóricos, seria o contrário: um espaço estriado, que se assemelha a um tecido com suas tramas de fios verticais e horizontais que se entrecruzam. Para eles, “o que cobre o espaço estriado […] é o céu como medida, e as qualidades visuais mensuráveis que derivam dele”. Quando privilegiamos o olhar para o mar, ou seja, para o espaço liso, há uma espécie de recusa daquela paisagem já formada, do espaço estriado, apontando para uma tentativa de construção de uma outra paisagem e de uma outra experiência com o espaço.
Os trabalhos de Alexandre Wagner reunidos na mostra “Pequenos Formatos” colocam-se em um limiar entre o mar e paisagem: em muitos deles, as camadas de tinta se sobrepõem, formando um contínuo que nos confunde enquanto espectadores. A linha do horizonte quase se desmancha em nosso olhar, como quando estamos diante do mar. Em outros momentos, entretanto, um baixo horizonte se estende, ocupa e divide a tela. Há, nos trabalhos, uma latente vontade de paisagem interrompida pelo desejo de mar e do espaço liso, tal que escolha da escala dos trabalhos parece contradizer e afirmar tais desejos. A síntese e a abstração convergem com uma gestualidade mais contida, e revelam essa delicada relação; a escura paleta de cores transforma-se, entre mares e paisagens, em uma espécie de ode ao silêncio e a sua potência de criação.
Os mares e paisagens habitam o universo comum: não pertencem a ninguém, e, ao mesmo tempo, estão presentes no imaginário de todos. O seu lastro, porém, não é o real, mas está nas diversas representações pictóricas acumuladas ao longo da nossa história e cultura. O anonimato desses fragmentos do espaço, cujo árbitro é a memória coletiva, nos interpelam sobre uma possível partilha e experiência do sensível comum, e, ao mesmo tempo, nos interrogam sobre o incerto devir e sobre a possibilidade de uma percepção onírica.
Na maior parte dos trabalhos presentes na exposição, elementos colocam-se entre a continuidade dos mares e paisagens. Alguns deles funcionam, mesmo nos espaços lisos, como bandeiras ou demarcações que irrompem o percurso óptico ou apresentam-se como focos fulgantes de luz, cuja irradiação espraia-se pelas camadas de tinta do entorno. Com grande potência disruptiva, esses elementos operam como fendas nos espaços de representação e, ao apresentá-los, Alexandre Wagner testemunha a impossibilidade da coisa-espaço única e enuncia sua limiaridade.
Nesse sentido, o trabalho de Wagner aponta para uma outra possibilidade de se pensar o espaço e sua representação na contemporaneidade: entre o mar e paisagem, coloca-se um elemento de fratura. Entre as rugosidades do espaço, construídas e acumuladas pela história, e o espaço liso dos diversos mares que preenchem nosso olhar, somos tomados pelo extraordinário desses elementos-fratura. Em sua indefinição, eles apontam para uma potência localizada no espaço comum e nos lembram dos encontros e limites entre mar e paisagem.