A milhares de metros acima do Atlântico, faço o caminho de volta entre a América do Norte e a do Sul e recordo os momentos alegres e as motivações turísticas da viagem que se finda, enquanto minha filha dorme tranquila na poltrona ao lado...

O atraso na decolagem devido a um piloto que se sentiu mal no trajeto para o aeroporto na noite passada, ou a "pecinha" da aeronave que precisou ser trocada esta manhã; tudo já foi superado e, enfim, cruzamos este céu plácido e quase acolhedor... O que me propicia o tempo livre e necessário para escrever.

Abro o computador e releio o material que trouxe do Brasil. Infelizmente, a força do ócio, “mais que vadia” (como diria o poeta Djavan), fez a ideia de elaborar o texto durante a viagem se perder entre as princesas e montanhas russas de Orlando e “cair de cansaço” aos pés da Estátua da Liberdade... E uma vez que estamos falando em liberdade, cabe dizer que deixei em terra, lá na Ilha da Liberdade, as pretensões de historiadora ou mesmo a busca pela precisão que só um estudioso do assunto teria e, desse modo, dispo-me de muitos compromissos e, portanto, mais à vontade, ponho-me a narrar e tecer comentários sobre um fato muito peculiar, que chama atenção por ter conectado a história do Recife à de Nova Iorque de modo irreversível...

A ligação entre as duas cidades passa pelo domínio holandês em Pernambuco, que ocorreu entre 1630 e 1654 e teve seu auge no Governo do Conde Maurício de Nassau. Nesse período, o Recife, que durante a administração do Conde chegou a ser chamada Cidade Maurícia, abrigou uma comunidade judaica livre e desenvolvida, integrada nos negócios da região; principalmente nos engenhos de açúcar e no comércio. Eram judeus sefarditas (originários da Península Ibérica) que, fugindo da Inquisição, em busca da sonhada liberdade, haviam inicialmente emigrado de Portugal para a Holanda, uma vez que os holandeses, protestantes calvinistas, exerciam uma política de tolerância religiosa.

Com o estabelecimento dos holandeses em Pernambuco, foi a vez de muitos desses judeus migrarem da Holanda para o Brasil. Talvez a possibilidade de falar a língua pátria os tenha atraído, ou mesmo a possibilidade de estar ao lado de seus patrícios; mas, certamente, também o promissor mercado de açúcar e todos os negócios que tinham com os holandeses foram fatores importantes.

Em Pernambuco, a chegada dos judeus da Holanda ao Recife e a possibilidade de voltar a praticar a religião livremente, atraiu os cristãos novos que já habitavam a região. Aqueles que viviam a fé judaica em segredo (cripto-judaísmo), apesar de publicamente adotarem o cristianismo. O fato é que durante a ocupação flamenga, Recife chegou a ter uma população de cerca de 1600 judeus. Isso representava nada menos que cinquenta por cento da população de origem europeia da cidade. Mas esse equilíbrio durou pouco e chegamos ao ponto exato em que a história do Recife se encontra com a de Nova Iorque...

Imaginemos uma viagem, na mesma direção e em sentido contrário a esta que ora faço, há exatos 360 anos, no longínquo 1654... Nesta, não há motivações “turísticas” ... O que move é o medo, a perseguição e a necessidade da fuga... É o momento em que chega ao fim o domínio holandês no Brasil e o os judeus do Recife recebem o seguinte aviso: “Finalizar os negócios na cidade e partir em três meses” ... Das cerca de 600 famílias da comunidade, 150 decidem fugir do Brasil. Outras, muitas, convertem-se à religião católica, transformando-se em cristãos novos, para fugir da inquisição. E ainda, outras, fogem para o interior do estado, para o Sertão; levando consigo sua cultura. Muitas das famílias que insistiram em permanecer e continuaram praticando sua fé, foram denunciadas à Inquisição.

O navio Valk parte do Recife. Nele, famílias judias fazem uma tortuosa viagem. O navio é saqueado por piratas espanhóis e os judeus são levados presos para a Jamaica, ameaçados de entrega ao Tribunal do Santo Ofício... Por fim, e por sorte, 23 deles são resgatados por um navio francês, o Sainte Catherine e, em setembro de 1654, aportam ao Sul da atual Ilha de Manhattan, na que viria a se tornar uma das mais importantes metrópoles do mundo: Nova Iorque.

A recepção aos judeus, no entanto, não foi calorosa... Ao contrário. O governador geral da colônia, Peter Stuyvesant, holandês que havia lutado e perdido uma perna nas batalhas em Pernambuco, não desejava o estabelecimento dos judeus na Nova Amsterdã (nome holandês de Nova Iorque). Foi necessária a intervenção da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais – da qual os judeus na Holanda eram grandes acionistas, através de carta ao governador, com orientação expressa para que aquele grupo pudesse atuar nos negócios locais, estabelecendo-se definitivamente.

Liberada a sua permanência, o inesperado destino de parte desse grupo que saiu do Recife foi, simplesmente, o de formar a primeira comunidade judaica da América do Norte: A Shearith Israel (Os Remanescentes de Israel). Sua jornada, forja para sempre uma ligação entre as cidades de Recife e Nova Iorque; conexão esta que repousa simbolizada nas pedras centenárias da 1ª Sinagoga das Américas, a Congregação Kahal Zur Israel (Rochedo de Israel), da qual faziam parte os 23 judeus.

Interessante observar a simbologia dos nomes das congregações; de “rochedo” a “remanescentes” de Israel... Cabe refletir que os 23 “remanescentes” originaram um dos mais sólidos “rochedos” da história judaica e a comunidade Shearith Israel subsiste até os dias atuais, com sua sinagoga à Rua 70 com Central Park West, na Ilha de Manhattan.

A Sinagoga

Após a expulsão dos holandeses, segundo consta, o prédio da sinagoga teria sido confiscado e doado a João Fernandes Vieira, como reconhecimento à sua participação na Batalha dos Guararapes, que expulsou definitivamente os holandeses. A Rua dos Judeus foi rebatizada com o nome de Rua da Cruz e, mais tarde, em 1870, tornou a receber um novo nome, que permanece até os dias atuais: Rua do Bom Jesus, numa simbólica negação de seu passado judeu.

Apesar de se saber que a Sinagoga havia existido e funcionado entre os anos 1636 e 1654, não era possível precisar a sua localização. A “luz” para localizar a 1ª Sinagoga veio através da pesquisa do professor José Antônio Gonsalves de Mello, em Amsterdã, que identificou um manuscrito datado de 1657; um inventário feito em 1654, após a expulsão holandesa, no qual são listadas as construções de holandeses e judeus no Recife. Esse documento confirma a existência da Sinagoga na Rua dos Judeus.

Em 1999, o Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE recebeu da Federação Israelita de Pernambuco a solicitação de uma busca arqueológica, com a finalidade de identificar o local exato onde teria funcionado a Sinagoga Kahal Zur Israel. Os estudos localizaram a estrutura original da Sinagoga sob os números 197 ao 203, na hoje Rua do Bom Jesus, coração do Recife Antigo.

O processo de restauração se consolidou após longa pesquisa e investigação arqueológica. No ano 2000, O interior da sinagoga foi reconstituído, utilizando-se no templo a disposição encontrada nas sinagogas sefarditas do século XVII. O prédio, restaurado, hoje sedia o Museu Sinagoga Kahal Zur Israel e foi aberto ao público em 2001. Tem exposição permanente de documentos, achados arqueológicos e dos vestígios da Sinagoga original (cujo prédio teria sido demolido no início do século XX). O livro de visitas chega a registrar cerca de 2.000 pessoas por mês. Trata-se de um importante ponto turístico e cultural do Recife no qual funciona o Centro de Cultura Judaica de Pernambuco.

O projeto de restauração configurou o pavimento térreo de modo a exibir os achados arqueológicos e também a criar uma espécie de “realidade micro temporal”, uma vez que o interior se resguarda da luz forte e dos ruídos do ambiente da rua e parece levar o visitante a uma outra dimensão no tempo. A farta informação em termos de imagens, textos e outros elementos, além do ambiente com paredes sem revestimento e os antigos tijolos maciços à mostra, vai recriando no visitante a sensação de uma “viagem pelo tempo”.

A iluminação do interior da Sinagoga, cheia de reflexos, tem um efeito dramático e consegue recriar um clima de ambiente antigo. O Mikvê, a “piscina” ritual com sete degraus e o poço que o alimentava, o Bor, este com 70cm de diâmetro de 1,70m de profundidade, estão protegidos por um piso elevado de vidro transparente. Pode-se “caminhar” por sobre o Mikvê, que foi reconhecido por um tribunal rabínico no ano 2000, como original, caracterizando definitivamente o local como a 1ª Sinagoga das Américas.

O piso do século XVII se encontra à mostra em vários trechos do andar térreo, situando-se a cerca de 60 cm abaixo do nível da rua. Vê-se, também partes de uma parede construída para conter as águas do Rio Capibaribe, que hoje passa a muitos metros dali, demonstrando os sucessivos aterros por que passou o bairro do Recife ao longo dos séculos.

O ambiente está repleto de painéis autoexplicativos, todos bilíngues, e se vê textos e imagens por todos os lados. Há fragmentos de cachimbos holandeses e louças com emblemas judeus encontrados nas prospecções arqueológicas. Esses elementos, em conjunto, criam para o visitante um mosaico de informações que vão demonstrando a importante participação daquela congregação na vida do Recife holandês.

As escadas que levam aos andares superiores são em estrutura metálica, com degraus em madeira. Por todas as paredes se vê informações sobre a cultura judaica: cartazes, banners, pinturas. A figura do primeiro Rabino, Isaac Aboab da Fonseca, destaca-se em uma das paredes. No pavimento superior, encontra-se o templo; uma recriação do ambiente e mobiliário de uma sinagoga sefardita do século XVII.

No processo de concepção, organização e seleção de acervo para exibição, foram utilizados os painéis onde são narrados os principais acontecimentos que marcaram historicamente os primeiros passos da presença judaica em Pernambuco. O Museu Sinagoga Kahal Zur Israel recebe visitas do mundo inteiro e encanta pela sua simplicidade impregnada de história. A rua, curta e arborizada, com fachadas coloridas, abriga o berço daqueles 23 judeus que fundaram posteriormente a Congregação Shearith Israel, ainda hoje existente em Nova Iorque, com seu templo atual no Central Park.

Mais que um simples projeto de restauro arquitetônico, o trabalho realizado na Sinagoga simboliza o resgate de uma história que se havia quase perdido, trazendo à luz a real dimensão da participação dos judeus no Recife do Brasil Colônia.

Em Recife, à frente do Museu-Sinagoga, uma placa de metal, na calçada, apresenta os seguintes dizeres: “SINAGOGA KAHAL ZUR ISRAEL. Primeira sinagoga oficial nas américas, data do século XVII. Representa o principal marco da presença judaica no Brasil. Em 2001 foi reconstituído o espaço da sinagoga, passando a abrigar o Centro Cultural Judaico de Pernambuco”.

Em Nova Iorque, em 1954, dentre os eventos comemorativos pelos trezentos anos da presença judaica na cidade, foi erguido um marco em pedra no local do desembarque do navio francês Sainte Catherine. Nele, pode-se ler o seguinte texto: “Erguido pelo Estado de Nova York em homenagem à memória dos vinte e três homens, mulheres e crianças que aqui desembarcaram em setembro de 1654 e fundaram a primeira comunidade judaica da América do Norte”.

Está feita a conexão... Hora de aterrissar em Recife. Lá embaixo já se veem as luzes da Cidade Maurícia.

Vale a pena visitar:

http://www.arquivojudaicope.org.br/2012/
(Sítio oficial do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco)
https://www.facebook.com/sinagoga.kahalzurisrael
http://www.kahalzurisrael.com/

E ler:

Livro: “A Ilha no Centro do Mundo”, de Russell Shorto (Trata sobre o período holandês da Ilha de Manhattan)
Livro: “A Presença judaica em Pernambuco. Passos perdidos, história recuperada”, de Tania Neumann Kaufman.

Assistir:

Documentário: “O Rochedo e a Estrela”, de Katia Mesel – 2012