O ser humano, na sua íntima originalidade social, traduz suas raízes. E, nesse processo de ocupação de suas relações sociais com aspectos e traços culturais comuns, o ser humano cria o seu ambiente. Internaliza seus hábitos para gravar costumes e seus valores culturais, que irão definir sua paisagem local. Assim é a vida do vaqueiro, pastor de gado que tem suas origens na Península Ibérica, remota da Espanha, do clima seco e de percorrer vários lugares a cavalo. Então, para se tornar um vaqueiro, é preciso, antes de tudo, conhecimento e intimidade com a sua região.

Melville Jean Herskovits, um antropólogo norte-americano, chamaria aquilo que no ambiente constitui o trabalho feito pelo homem. A região é então uma criação do homem: o que o homem criou e realizou, agindo e atuando sobre o meio, de modo a formar o seu ambiente. Então, o vaqueiro não se faz sozinho, ele necessita de uma região1.

Digamos que a cultura e a educação são feitas de espontaneidades. Elas existem pela sua autenticidade. E no Nordeste, lugar de paisagem árida e de paisagem de floresta, o vaqueiro constrói sua identidade. Por isso, nem todo nordestino é vaqueiro, mas todo vaqueiro que luta é nordestino raiz. Vale salientar que o vaqueiro determina e define a paisagem de um lugar. Fixa suas pegadas na história. Mas, por que vaqueiro é uma profissão que não se aprende na escola? Talvez seja porque, para ser vaqueiro, é preciso muita coragem, disposição e confiança em Deus, e isto a escola não ensina.

Talvez pelos desafios com empreitadas na caatinga, talvez pela lida com o gado, ou ainda por carregar determinação em ser atleta da sela, ou por compreender a região e senti-la mais do que qualquer pessoa, as nuances de cada detalhe de sua região, isso não está na escola e em seu currículo. Ou ainda pelo vaqueiro utilizar o imaginário em demasia de maneira sagaz em sua vida.

O imaginário, que é a ultrassonografia de Deus, ainda não está nos currículos escolares. Mesmo porque, para ser vaqueiro, é preciso estar bem arreado, precisa estar de terno de couro, bota, luva e chapéu. A sela dele tem que ter rabicho, uma cilha (cinta larga, de couro ou de tecido reforçado, que cinge a barriga das cavalgaduras para apertar a sela ou a carga) só, e também um peitoral (correia que cinge o peito do cavalo), afirma o vaqueiro Valírio Luciano de Lucena, nordestino lá da Chapada do Araripe, Ceará, destemido e determinado, e de fé inabalável em Deus.

Seu Valírio diz que sempre olhou para o futuro desde criança. E aos dez anos de idade, já tinha intimidade com o boi. Nesse universo de sobrevivência em meio aos desafios, seu Valírio fez histórias pelas terras do Ceará e de Pernambuco:

Assim, com quinze anos, eu dava conta da lida de dois vaqueiros. Trabalhei de 1954 a 1984 como vaqueiro. Trabalhei montado em bons cavalos. Sempre que eu precisava de um cavalo, meu pai comprava. Gostava de desafios, sempre fui um desafiador das coisas difíceis, disse seu Valírio.

Mas, o que faz um vaqueiro? Um vaqueiro, segundo seu Valírio, vaqueiro raiz: “sabe montar a cavalo, correr atrás do boi para derrubá-lo, sabe ainda identificar o boi de cada fazenda pelas marcas e sinais nas orelhas do boi, sabe distinguir caminhos, cuidar de bezerros, é valente e só tem medo dos castigos de Deus”. Isso conta seu Valírio em seu livro, Verdades de um Vaqueiro, publicado em 2019, tudo sobre a sua profissão de vaqueiro, que não tem nenhum livro que ensine. Por exemplo, como saber ou conhecer o rastro de um bezerro? Um rastro de uma vaca que deu cria? Ou se o rastro é de macho ou de fêmea? Ou se é comprido ou redondo? Ou ainda se o bicho se coçou em um pau e se o boi tem rabo grosso, é um boi preguiçoso, entre outras sabedorias:

E mais, eu sabia se o chocalho era ou não da fazenda. Isso o próprio serviço ensina. Fora esses duzentos e tantos, que eu não sei quantos nem quantos eram, eu conhecia alguns chocalhos de outras fazendas de quem a gente tinha contato. Então, isso é um dom dado por Deus, não tem livro para ensinar. E quem vai lhe ensinar? O tempo, o trabalho, a luta. Enquanto nas outras formaturas se aprende por um livro, nós vaqueiros aprendemos pelo serviço.

Ou seja, há o encontro entre a cultura e a ciência na profissão de vaqueiro, pois ele é um portador desse encontro. Há de se considerar, como afirma o pedagogo Loris Malagozzi, quando pergunta aos professores: “o que te encantou hoje? Esse encanto nos deixa mais humildes também porque deveríamos ter mais fé nas crianças.”

Seu Valírio foi um dos fundadores da Missa do Vaqueiro no município de Serrita em Pernambuco em homenagem ao seu colega, Raimundo Jacó. E, como ciência e cultura não se separam, em ambas há o processo criativo, o vaqueiro é portanto um ícone da identidade nordestina, pois já imaginou o nordeste sem vaqueiro? Como seria?

Ressaltamos que tudo o que está entre o céu e a terra deveria também estar nas escolas. Já que o vaqueiro não aprende a ser vaqueiro na escola, como a escola pode ensinar à criança a vivência da profissão de vaqueiro? Pensando nisso, o professor José Pacheco, mestre em Ciência da Educação pela Faculdade de Psicologia e em Ciências da Educação pela Universidade do Porto, Portugal, criou e incentivou núcleos de reflexões para que projetos educacionais sejam conhecidos por todos os professores românticos e conspiradores. Ele afirma que no Brasil os projetos se ignoram mutuamente.

Diz o professor José Pacheco que escola não são prédios, são pessoas. Por serem pessoas, devemos aprender em comunidades de aprendizagem.

Para tanto, o vaqueiro Valírio nos ensina que, para ser vaqueiro, é preciso muita arte. Diferente do futebol, que são muitos a correr atrás da bola... Eu acho mais difícil que futebol. Ele diz ainda que, para saber se a terra é boa, “a primeira coisa que a gente tem que ver são as árvores. Árvores desenvolvidas provam que a terra é boa. É terra que dá linha de casa, que dá estaca boa, muita vara, é terra com vegetação desenvolvida”.

Disse a filha de seu Valírio, Solange Luciano de Lucena:

Qualquer gota d’água que cai do céu é recebida com profunda gratidão e reverência ao Criador.”A alegria pode ser facilmente identificada no semblante de cada um. A chuva é o presente mais aguardado e festejado em suas vidas. Representa a manutenção das espécies sobre o solo encharcado de lembranças e histórias de gente que nunca desistiu de lutar, mesmo diante de tantos sacrifícios. A frase mais repetida e introjetada por essa gente guerreira talvez seja a que diz que o sertanejo é, antes de tudo, um forte.

Hoje, seu Valírio está com mais de 80 anos, já não pega mais boi, mas há nele uma força de conexão entre a humanidade e o Criador, pois o vaqueiro depende exclusivamente da proteção divina para aguardar as dádivas de Deus. É a sobrevivência e a fé que caminham lado a lado; é a ciência, é a arte, é a cultura que se unem em todas as experiências de vida. É simplesmente a arte de viver ao lado de sua região, de sua identidade, de sua raiz, com muita sensibilidade e sentimento que realiza um vaqueiro.

Eu nasci para ser vaqueiro. Sou realizado porque fui vaqueiro. Eu me considero um atleta de sela. Se eu fui um vaqueiro bom ou mau, o mundo diz.

(Valírio Luciano de Lucena, vaqueiro do Nordeste do Brasil)

Notas

1 Retirado do texto datilografado pelo professor alagoano Manuel Diégues Júnior para o Simpósio sobre Folclore e Turismo Cultural, em São Paulo, agosto de 1970.