Ao percorrermos paisagens urbanas e rurais, nos deparamos com alguns lugares de memória, espaços significativos para a comunidade nos quais a memória cristalizou-se ao longo da história. A memória é dinâmica, sofre os efeitos da lembrança e do esquecimento, além de estar suscetível a diversificadas manipulações. E os lugares de memória refletem essas características essenciais, guardando um caráter não só material e funcional, mas, sobretudo, simbólico.
A lagoa central de Lagoa Santa, em Minas Gerais, é um lugar de memória fundador da sua comunidade e tem sofrido impactos tanto nos seus aspectos materiais quanto nos funcionais e simbólicos. Lagoa Santa nasceu nesse lugar de memória, nessa prodigiosa lagoa! E em torno dela têm se desenvolvido acontecimentos que impactaram a história da cidade, do país e até do mundo.
A lagoa formou-se há cerca de 6 mil anos e tem características diferenciadas de todas as outras lagoas de formato circular da região. É a única em formato triangular e que não tem contato direto com terreno de calcário. Na bacia da Lagoa Santa a rocha de calcário encontra-se mais profunda no subsolo, abaixo de uma camada de filito, uma rocha metassedimentar originada a partir do metamorfismo (profunda modificação química e física) de uma rocha sedimentar argilosa.
Durante muitos anos acreditou-se que a lagoa central tivesse sido originada pela dissolução do calcário, como ocorre com as outras dolinas da região cárstica. Mas estudos demonstraram que a lagoa surgiu a partir do barramento de água resultante de um deslizamento de terra do Morro do Cruzeiro que represou os córregos que abastecem a lagoa: o Francisco Pereira e o Bebedouro.
A constituição física e a formação da lagoa são notáveis nesses 6 mil anos de existência, mas não são mais surpreendentes do que o seu uso funcional e a sua carga simbólica ao longo do tempo. Foram suas águas que atraíram milhares de pessoas ao antigo Arraial, a partir do movimento simbólico da fé e do movimento funcional da ciência.
A lagoa foi utilizada por séculos por povos primitivos que passavam pela região nos seus caminhos nômades. Não temos registros da relação e do uso da lagoa por esses agrupamentos, mas temos conhecimento científico das suas vivências na região. O povo de Lagoa Santa, ou Povo de Luzia, fez parte de um movimento migratório vindo da América do Norte há aproximadamente 12 mil anos, segundo análises do Genoma realizadas na USP por André Strauss. A Luzia, fóssil humano encontrado em 1974 nas proximidades de Lagoa Santa pela arqueóloga francesa Annette Laming Emperaire, demonstra que essa região foi ocupada muito remotamente. Luzia e o seu povo eram nômades e possivelmente circularam e interagiram de forma física, funcional e simbólica com a lagoa central.
Povos indígenas também viveram e fizeram da lagoa um lugar de memória. Não temos muitos estudos sobre esses povos originários na região específica de Lagoa Santa, mas sabemos que grupos ligados aos troncos linguísticos Macro-Jê e Tupi-Guarani ocuparam este território e utilizaram as suas águas de formas variadas. Estudos genéticos revelam a relação entre os Botocudos (grupo Macro-Jê) e o Povo de Luzia. Esses agrupamentos humanos não causaram grandes impactos ambientais.
Mas a violência devastadora dos colonizadores exterminou aldeias inteiras e expulsou os remanescentes desses povos para zonas de matas. Atualmente, em Lagoa Santa, há registros de poucos representantes indígenas, sem vínculos revelados com os antigos povos que ocupavam a região. Essa parte da memória encontra-se perdida.
Quando o baiano Felipe Rodrigues de Macedo chegou em 1733, a lagoa era límpida e rodeada de rica vegetação. Criou o primeiro vilarejo, chamado Lagoa Grande, a partir do seu engenho de aguardente. Mas foi a partir de 1749 que a realidade da lagoa foi transformada completamente. O padre de Sabará, Pedro Antônio de Miranda, espalhou a notícia de que as águas da Lagoa Grande realizavam curas milagrosas. Esses relatos foram narrados ao médico italiano Antônio Cialli e ao cirurgião português João Cardoso de Miranda, que realizaram estudos e publicaram livros divulgando o poder curativo das águas em 1749 e 1750.
O livro anônimo publicado em Lisboa cuja autoria foi recentemente descoberta ser de Cialli - Prodigiosa lagoa descuberta nas Congonhas das Minas do Sabará, que tem curado as varias pessoas dos achaques, que nesta relação se expõem - descreveu cento e doze curas pelas águas da lagoa, inclusive a do fundador do lugarejo, Felipe Rodrigues. Segundo os relatos, Rodrigues tinha feridas abertas que não cicatrizavam e foi curado ao se banhar na lagoa. A notícia dessa e de outras curas surpreendentes atraiu milhares de romeiros ao arraial em busca de cura.
O médico explicava as curas pela ciência e o padre, pelo milagre. O cientista Cialli realizou estudos físicos e químicos na água e detectou que havia dois minerais que tinham grande efeito medicinal: o vitríolo e o ferro. Já o padre Miranda difundia a fé na Nossa Senhora da Saúde que se manifestava através dos poderes sagrados das águas da lagoa. Ciência e fé, juntas, revelaram o poder da lagoa que de Lagoa Grande passou a ser chamada de Lagoa Santa.
Com a disseminação dos relatos de cura e o movimento intenso de romeiros e novos moradores, houve grande impacto poluidor à lagoa. O cirurgião Cardoso de Miranda descreveu em 1750 que era “a água da lagoa mais de cisterna, que nativa, pelas muitas águas e imundices que de fora recebia”. Esse quadro exigiu uma ação rápida do governo provincial a fim de evitar a contaminação geral da lagoa. Determinou-se que o povoado fosse construído acima do seu sangradouro e criaram-se regras municipais para a construção de ruas, residências e para os banhos na lagoa.
A lagoa sempre foi utilizada de diversas formas pela população e tem sofrido impactos humanos contínuos há séculos. Além da busca de curas medicinais ou sagradas, ela é utilizada para pesca, usos domésticos, artesanato feito com o junco das suas margens, turismo, esporte, lazer. Em todos esses processos, viu-se a construção de novas memórias e relações materiais, funcionais e simbólicas com a lagoa.
No século XIX chegou à Lagoa Santa o paleontólogo dinamarquês Peter W. Lund a fim de realizar pesquisas nas cavernas cársticas na região. Lund tornou essa região conhecida mundialmente, atraindo inúmeros cientistas e viajantes que navegaram, pesquisaram, pescaram e admiraram a lagoa, construindo e difundindo novas memórias.
Ao redor da lagoa central nasceu a ciência da ecologia com os estudos do dinamarquês Eugen Warming, auxiliar de Lund entre 1863-1866. Warming publicou um livro sobre o cerrado mineiro que é considerado o primeiro estudo de fitoecologia mundial.
Andreas Brandt, outro auxiliar e desenhista de Lund, construiu sob as palafitas da lagoa a sua “Casa d’Água”, uma construção de madeira em estilo norueguês que servia também de abrigo para o seu barco Galathea. Essa casa às margens da lagoa e os passeios de Galathea sob as suas águas também construíram esse lugar de memória.
A orla da lagoa tem um espaço cheio de história, mas que poucos conhecem. É o Horto, local com uma concentração maior de árvores e onde, anteriormente, existia a Mata da Jangada. Atualmente a sua vegetação não é remanescente desta mata, pois foi resultado de muitas intervenções urbanas ao longo dos anos.
Foi nesse cenário tranquilo que ocorreu uma sangrenta batalha que fez Lagoa Santa ser citada em muitos livros de história do país. Aconteceu durante a Revolução Liberal de 1842, uma guerra em que dois grupos de brasileiros se enfrentaram: os liberais e os conservadores. Tudo começou quando D. Pedro II suspendeu as eleições de 1842, o que levou os liberais de Minas Gerais e São Paulo à guerra.
A batalha na orla da lagoa ocorreu nos dias 4 e 5 de agosto de 1842, quando as tropas conservadoras atacaram a cidade onde os liberais estavam entrincheirados. Há vários relatos sobre como a população de Lagoa Santa apoiou os liberais, escondendo-os nas suas casas e até distribuindo armas e munição no meio do fogo cruzado. Apesar da desvantagem numérica, os liberais venceram e o comandante conservador foi ferido em combate. A batalha em Lagoa Santa foi escrita nos livros como uma das grandes vitórias liberais da Revolução de 1842, mas não foi capaz de mudar o rumo da guerra com a vitória dos conservadores. Deixou, entretanto, as suas marcas nesse lugar de memória.
Em alguns momentos as ações humanas foram mais impactantes na lagoa, como na época em que a cidade virou um balneário e atraiu um turismo elitizado nas décadas de 1950 e 1960. Várias casas de campo foram construídas e trampolins particulares de madeira instalados dentro da lagoa para esportes náuticos e nado. A urbanização sem os cuidados necessários com os recursos naturais provocou situações como o aumento da turbidez, a poluição das águas e a diminuição da diversidade biológica.
A situação se agravou nas décadas de 1970 e 1980 com a construção de uma praia artificial. Foi elevado o nível do vertedouro da lagoa onde ela dá vazão ao córrego do Bebedouro, o que subiu o nível de toda a lagoa. Toneladas de areia foram despejadas numa das margens para se criar uma grande atração turística: a Praia de Lagoa Santa. O empreendimento foi bem-sucedido do ponto de vista turístico, pois atraía centenas de pessoas nos fins de semana. Porém, no que se refere à saúde pública e ao meio ambiente foi um desastre. Havia diariamente vários casos de afogamentos e disseminação de doenças. Nos anos 80, houve um grande surto de esquistossomose, conhecida como xistose, contaminando grande número de pessoas.
O impacto ao meio ambiente foi violento. A vegetação natural das suas margens foi submersa e a migração de peixes jovens do córrego do Bebedouro para a lagoa foi interrompida. Para manter a praia, vários caminhões de areia eram despejados semanalmente na orla da lagoa, causando um intenso assoreamento. A fauna e a flora foram impactadas pela poluição produzida pelo turismo e pelos esportes náuticos sem regulamentação.
Com o crescimento da consciência e luta ambiental na década de 1980, a Praia de Lagoa Santa foi questionada e desativada. Em 1983 interromperam a sua manutenção, os esportes náuticos, banhos e os trampolins foram proibidos por anos e, em 1988, a praia acabou definitivamente, mas deixando marcas permanentes na lagoa. O lugar de memória foi e é constantemente ressignificado.
A partir daí, algumas ações pontuais de desassoreamento e despoluição da lagoa foram implementadas, o turismo e esportes náuticos foram retomados anos mais tarde. Atualmente a equipe olímpica brasileira campeã de canoagem treina diariamente na lagoa central. Novas memórias e simbolismos vinculam a lagoa às atividades esportivas.
A cidade cresce e pulsa em torno da prodigiosa lagoa que a originou e que permanece inspirando e dando vida a quem contempla as suas águas carregadas de beleza e sagrado. Mas o cuidado com o maior lugar de memória de Lagoa Santa precisa ser constante e intenso. Para isso é fundamental conhecer a sua história, refletir sobre as memórias construídas a partir das suas interações com a comunidade e, a partir desse conhecimento e valorização, preservar esse lugar de memória fundamental para a identidade cultural de toda a comunidade.