A melhor receita para o romance policial: o detective não deve saber nunca mais do que o leitor.
(Agatha Christie)
Claro que o subtítulo brinca com o “Seis passeios pelo bosque da ficção” (1994), de Umberto Eco, não sei quantos serão, não pretendo teorizar o tema, não aspiro a percorrer uma tipologia nem a trazer à colação os que poderiam ser estratégicos na galeria dos possíveis exemplos… apenas passear por algumas veredas que me seduzam mais neste bosque.
Há literatura para todos os momentos e objectivos. Há, até, Biblioterapia, inclusivamente, que “cura” (Osho). E “Os livros das nossas vidas” (2016), como nos afirmam Nazaré Barros e Mendo Castro Henriques, para todos os gostos. No centro dessa diversidade imensa, claro, o cânone (Harold Bloom), os clássicos comunitários (Italo Calvino), os dos Mestres (George Steiner), as “enciclopédias da tribo” (Eric Havelock)… enfim, o cânone é vasta matéria a que dediquei reflexão para que remeto quem por ele se interesse: da trilogia que o teoriza (“Luz e Sombras no Cânone Literário”, 2014; “Do que não existe. Repensando o Cânone Literário”, 2018; “Perfis & Molduras no Cânone Literário”, 2018), ao sombreado que perscrutei, de seguida, numa duologia (Sfumato. Figurações in hoc signo. Na senda da identidade nacional, 2019; Sfumato & Cânone. Na senda da identidade nacional, 2021).
Quando se deseja a mera distracção, eis o policial a emergir da prateleira e a afundar-nos na poltrona, prendendo-nos pela noite dentro. Em era de incerteza de Erwin Schrödinger (Tobias Hürter, Eric Hobsbawm, John Kenneth Galbraith, António Barreto, etc.), oferecem-nos a crise e a ultrapassagem que nos afunda num sono tranquilo…
O fascínio pelo desconhecido, pelo que se sabe que existe/aconteceu, mas se quer identificar/esclarecer, tem-se enlaçado com o fascínio de quem o consegue descobrir, ou melhor, desvelar. Não é por acaso que Édipo se fixou no nosso imaginário e na sua consequente iconografia na pose da resposta à pergunta da Esfinge (desde as cerâmicas antigas até Ingres, Moreau, François Xavier Fabre, François Émile Ehrmann, etc.), mais do que no seu auge de rei ou no dramatismo do seu final…
A história da cultura é, também, a da cedência da transcendentalidade à centralidade humana, do destino ao protagonismo e do sentimento de impotência ao deslumbramento pela sua capacidade criativa. O “désenchantement do monde” (Marcel Gauchet) conduz às metamorfoses do velho Prometeu, volvido “Pensador” (Rodin), observando, de outrora, os homens construindo a pulso a sua história com o fogo roubado aos deuses…
Daí que as artes tematizem esse exercício de descoberta, valorizando a coragem e/ou a inteligência. Nesse exercício, destaca-se a maior ou menor capacidade de dedução e de indução a partir de sinais, vestígios, de ir compondo um puzzle de hipóteses até que algo venha sobreimprimi-lo ao real, validando a intriga: a intelecção do que está por trás da aparência ou do enigmatismo… E não há intelecção sem personalidade/humanidade. Daí os detectives (in)formais, consubstanciando esse itinerário de desvelação, como Auguste Dupin (de Edgar Allan Poe), Sherlock Holmes (de Arthur Conan Doyle) e Hercule Poirot (de Agatha Christie). Daí, também, aqueles com que se confrontam, os criminosos hábeis, que planeiam o crime de modo a dissimular a sua responsabilidade e a simular outra coisa… tudo se concentra na investigação e na solução com que o ciclo ficcional se encerra.
Muitos defendem que essa componente “policial” ou “detectivesca” (por comodidade, não os distinguirei) se perde na noite dos tempos. Assinalam, alguns, “n’ As Mil e Uma Noites”, os contos "As Três Maçãs”, "O Mercador e o Ladrão" e "Ali Khwaja", estes dois com, quiçá, dos primeiros detetives de ficção.
Mas é no séc. XIX que o género adquire protagonismo e fideliza o seu público.
Edgar Allan Poe (1809-1849) apresentou-nos ao seu Auguste Dupin no famoso “Os crimes da rua Morgue” (1841) e prendeu-nos “n’ O Mistério de Mary Roget” (1842-43) e “n’ A Carta Roubada” (1845).
Associados, os mistérios oitocentistas fazem cintilar casos policiais nas sombras da noite citadina embebidos da representação da sociedade da época. Os de Paris (1939), com Eugène Sue, os de Lisboa (1854), com Camilo Castelo Branco, os do Rio de Janeiro com diversos autores (1854-1924: Antônio José Nunes Garcia, com “Os Mistérios do Rio de Janeiro e os legítimos deserdados”,1854; Antonio Jeronymo Machado Braga, com “Os Mistérios do Rio de Janeiro ou os ladrões de casaca”,1866-74; Nyctostrátegus, com “Os Mistérios do Rio de Janeiro” , 1874; Paulo Marques, com “Os verdadeiros mistérios do Rio de Janeiro”,1880); José da Rocha Leão, com Os Mistérios do Rio de Janeiro, 1881), os da Estrada de Sintra (1871), com Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.
Mas a lista é interminável, internacional, contínua, bastando lembrar alguns exemplos em que, deliberadamente, não incluo autores de que falarei adiante: Émile Gaboriau (1832-1873), Arthur Conan Doyle (1859-1930), Maurice Leblanc (1864-1941), Rex Stout (1886-1975), Raymond Chandler (1888-1959), S. S. Van Dine (1888-1939), Agatha Christie (1890-1976), Dashiell Hammett (1894-1961), P. D. James (1920-2014), Rubem Fonseca (1925-2020), Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), etc..
Correspondentemente, as obras mais destacadas que se foram sucedendo no tempo: O caso Lerouge (1866), de Émile Gaboriau, Um estudo em vermelho (1887), de Arthur Conan Doyle, A agulha oca (1909), de Maurice Leblanc, O caso Benson (1926), de S. S. Van Dine, Seara vermelha (1929), de Dashiell Hammett, Assassinato no Expresso do Oriente (1934), de Agatha Christie, Picada mortal (1934), de Rex Stout, O sono eterno (1939), de Raymond Chandler, A chantagista (1962), de P. D. James, O caso Morel (1973), de Rubem Fonseca, O silêncio da chuva (1996), de Luiz Alfredo Garcia-Roza…
E o protagonista tende a corresponder a uma de quatro categorias de uma tipologia onde as fronteiras, às vezes, se diluem: o detetive amador (Miss Marple, Jessica Fletcher, Lord Peter Wimsey), o profissional particular (Cordelia, Holmes, Marlowe, Spade, Poirot, Magnum, Millhone), o investigador da polícia (Dalgliesh, Kojak, Morse, Columbo, Alleyn, Maigret) e o especialista forense (Scarpetta, Quincy, Cracker, equipas da Investigação Criminal, NCIS, CSI e outras, Thorndyke).
Enfim, como já defendi em Luz & Sombras do Cânone Literário, as metamorfoses da heroicidade e da aventura marcadas e ritmadas pela inteligência em acção estão profundamente ligadas à memória cultural colectiva, bebe nesse património, inscrevendo-se nele de um modo dinâmico: revisitando-o e actualizando-o, transformando-o, ao mesmo tempo que corresponde às aspirações e inspirações do tempo (por impulso centrífugo ou centrípeto relativamente às circunstâncias).
É nesse contexto que emerge o “policial cultural” actual, que funde tipologias (da aventura a detectives, espiões ou investigadores…) e saberes, por vezes, bebendo em fontes já nossas conhecidas que repercutem O Despertar dos Mágicos dos anos 60 do séc. XX, mas reconduzindo esse conhecimentos a reflexões mais filtradas pela ciência oficial. Uma das obras que deu o maior impulso a esta onda de ‘policiais culturais’ onde a qualidade da escrita, o cuidado da síntese informativa, a verosimilhança e as fronteiras entre real e ficção são profundamente diversas e variáveis foi O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco, e que se transformou num best-seller internacional, com uma adaptação ao cinema que colocou na Idade Média o protagonista da mais clássica série de espionagem da Guerra Fria: Sean Connery, o mais carismático “James Bond” do “007”, herói de Ian Fleming criado em 1953. Através dele, a indústria cultural dialogou com a erudição académica e o mistério antigo com o policial moderno. Revisitarei adiante este filão.
Suspendo-me na vertigem das listas, prometendo alguns retratos para os próximos textos desta série.