Países como Montenegro, Malta, Portugal e outros oferecem um visto especial para os chamados nômades digitais, um convite para que profissionais empregados contribuam com a economia local. Nos últimos anos, vem crescendo consideravelmente o número de profissionais que se denominam nômades digitais em todo o mundo, aqueles que, pela natureza de seu trabalho remoto, têm a possibilidade de se deslocar seja por motivos profissionais ou pelo desejo de viajar e conhecer outros lugares.

Pesquisas apontam que, no último ano, cerca de 35 milhões de pessoas se declararam como nômades digitais. O termo "nômade digital" foi popularizado com o livro de mesmo nome, de Tsugio Makimoto e David Manners, lançado em 1997. No livro, os autores defendem como a tecnologia possibilita um desejo de vida inato no ser humano, permitindo que homens e mulheres possam viver e trabalhar enquanto se deslocam.

O que implica ser nômade digital? Podemos observar os lados positivos dessa empreitada, como: nova comida, novos costumes, novas pessoas, nova casa, novo idioma, tudo novo uma outra vez, um reboot, um recomeço. Porém, tudo novo também traz enormes desafios e aspectos que podem ser negativos: a ausência da sua comida favorita, temperos estranhos, modos e costumes não aprendidos, distância da família, saudade dos amigos, clima diferente e espaço desconhecido. Mas, afinal, o que faz com que tantas pessoas achem essa ideia atraente?

Nômades x sedentários

Os nômades são muitas vezes chamados de viajantes, andarilhos, ciganos etc. Uma concepção comum no imaginário popular para os nômades é a de aventura, juventude e liberdade. Por sua vez, o sedentário pode ser identificado como aquele enraizado, estruturado, fixo, ou ainda como sinônimo de estagnação, ausência de energia e atitude, como falta de mobilidade.

Na literatura, uma das referências mais conhecidas desse binômio se encontra no livro de Gênesis, com as figuras de Caim e Abel. Os dois irmãos são frutos da relação entre Adão e Eva, após a sua expulsão do paraíso. Caim ocupa a função de agricultor, conectado à sua terra, e Abel a de pastor, percorrendo a terra com seu rebanho. Ambos apresentam oferendas a Deus, entretanto a predileção da oferenda de Abel causa ciúmes em seu irmão. Motivado por esse sentimento, Caim mata seu irmão Abel. Como punição pelo fratricídio, Caim é banido de sua terra e passa a vagar pelo mundo. Encontramos aqui uma controvérsia do nomadismo, primeiro apresentado na figura de Abel como liberdade, e em seguida se torna punição e exílio com a figura de Caim.

Direito constitucional x liberdade condicionada

A liberdade é um conceito complexo, mas, afinal, o que é a liberdade? A concepção mais imediata de liberdade é a liberdade física, a possibilidade de ir e vir, a possibilidade do nomadismo. Aqueles que infringem a lei têm a sua liberdade física suspensa e são colocados em presídios como punição. O aprisionamento é oposto à punição aplicada por Deus a Caim, sentenciado ao exílio. Aqueles fora da lei estabelecida por determinada sociedade têm reprimido seu direito de ir e vir e são confinados em um espaço fechado, espaço esse que Foucault1 chama de heterotopia de desvio:

Aquela na qual se localiza os indivíduos cujo comportamento desvia em relação à média ou à norma exigida. São as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas; bem entendido também, as prisões.

Esses locais, chamados por Foucault de heterotopia de desvio, fazem parte do espaço social, são lugares físicos, reais, mas não contêm as mesmas normas e organizações do restante do espaço, estão apartados. Dessa forma, os presidiários ficam excluídos da sociedade, não estão fora, nem dentro. Punidos com o sedentarismo.

O direito de ir e vir está presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, assinada em dezembro de 1948. No Brasil, esse direito é constitucional, garantido no artigo 5º, inciso XV da Constituição Federal de 1988. Apesar de ser um direito, a liberdade de ir e vir é condicionada. Condicionada a pedágios, vistos e carimbos. Mais recentemente, em 2020, com a COVID-19, essa liberdade foi condicionada, frente à supremacia da saúde pública, expressa no art. 6º da Constituição Federal de 1988, sobre todos os demais direitos.

Pós-pandemia

A pandemia de 2020 ocasionou um sedentarismo mundial, a privação da liberdade de ir e vir. Para alguns, esse sedentarismo trouxe adoecimento; para outros, trouxe novas conexões. O que podemos observar é que, após o período da pandemia, houve um crescimento do número de pessoas em deslocamento, sejam para férias, em deslocamentos temporários, ou os constantes deslocamentos, como no caso dos nômades digitais.

A privação da possibilidade de ir e vir despertou um desejo ainda maior em muitas pessoas de se locomoverem, desbravarem novos territórios, se jogarem ao desconhecido, adquirindo novas experiências e reinventando a si mesmas. Para aqueles que ficaram seduzidos por essa ideia, é importante lembrar que, para ter um visto de nômade digital, é necessário apresentar uma renda fixa, que tem um valor distinto em cada país, variando entre cerca de 1.350 euros mensais, como é o caso de Montenegro, e 7.763 euros mensais, como é o caso da Islândia.

Notas

1 Foucault, Michel. Outros espaços. In: Ditos e escritos III - Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 411-422.