Neste planeta ameaçado pela presença ruidosa de uma humanidade que assola a vida em todos os termos, para além do genocídio, quando fazemos desaparecer ecossistemas inteiros, pondo em risco a sobrevivência de todos que nos acostumamos a pensar só como humanidades.
(Ailton Krenak)
Dos muitos caminhos para tratar da questão do Marco Temporal, opto por caminhar pela perspectiva indígena para, em seguida, tecer intersecções com outras teorias. Dessa maneira, é urgente enfatizar que a primeira mulher do plano terrestre é a Mãe Terra. Ela é um grande útero de mulher, como afirma João Paulo Barreto, mas não significa que seja homogêneo e universal, muito pelo contrário.
Para além de fronteiras entre estados e cidades, o território que hoje conhecemos como Brasil se organiza em Biomas. Seis são seus diferentes Biomas: Cerrado, Amazônia, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa. Mais que uma simples apresentação de um conjunto de ecossistemas, entender a Terra a partir de seus diferentes Biomas significa entender a coletividade em suas diferenças.
Sendo a Terra corpo de mulher, seus diferentes biomas podem ser compreendidos como Mulheres Biomas. Ao originarmos em determinado bioma, carregamos em nosso corpo-território as características do DNA desse lugar, que se manifestam em nossos modos de compreender, interagir e modificar o mundo. Nenhum bioma existe sozinho. Para que esse corpo de mulher se mantenha em equilíbrio, todos os biomas precisam estar saudáveis e protegidos. É na compreensão dessa perspectiva que nos colocamos irredutivelmente contra o Marco Temporal.
Bioma Amazônia
Com combinação única de clima, flora e fauna, o bioma Amazônia ocupa área de cerca de 7 milhões de quilômetros quadrados e se divide entre 9 países (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Venezuela, Suriname, Guiana Francesa e Brasil). A própria extensão do bioma Amazônia nos mostra que a ideia de Estado-Nação, que limita territórios por fronteiras e nacionalidades, tem pouco a dizer sobre a pluriculturalidade dos povos das amazônias profundas. Cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados estão em solo brasileiro, o que corresponde a 59% do território nacional. Embora seja o bioma mais preservado, muito de sua área já foi devastada. Desmatamento, queimadas, garimpo e, em primeiro lugar, a pecuária são os maiores destruidores do Bioma Amazônia. Mas existem grandes e importantes barreiras contra esses diferentes processos de depredação: as terras indígenas!
Desde a colonização, a ideia de Amazônia vem sendo popularizada pelo discurso ‘terra desocupada’, ‘mata virgem’, ‘terra improdutiva’, ou ainda, ‘terra de ninguém’, mesmo que estudos antropológicos datem a presença de povos indígenas para mais de 15 mil anos pelas bandas daqui. Por outro lado, estudos antropológicos recentes apontam para um novo encontro sobre aquilo que poderia ser a(s) Amazônia(s) - aqui sugerimos a leitura dos trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores Dr. Carlos Augusto da Silva, conhecido como Dr. Tijolo, que vem mudando a história da arqueologia da Amazônia e Eduardo Góes Neves, na obra Sob os Tempos do Equinócio.
Pelos caminhos que traçam Dr. Tijolo e Góes Neves, a Amazônia, ou talvez, as amazônias, nunca foi vazia, nem muito menos “virgem”. A maneira como conhecemos a Amazônia hoje é o resultado de anos de desenvolvimento tecnológico dos povos das amazônias profundas. A floresta Amazônica foi plantada. Ela é uma herança ancestral. A Amazônia singularizada e entendida como mata virgem que nos apresentaram é uma invenção da colonização.
Vanda Ortega, indígena do povo Witoto, fala que a imagem produzida por drones sobre a Amazônia apresenta apenas o verde das árvores, como se por aqui não houvesse pessoas. A floresta é constituída por diferentes ‘gentes’ – gente humana, gente ave, gente bicho, gente planta, gente rio, gente fungo e uma enorme quantidade de gentes microrganismos. Ainda temos nossas ‘gentes’ entes, são nossas entidades, nossas gentes não visíveis a olhos colonizados. Todas essas categorias de ‘gentes’ se relacionam em sociodiversidade. Por isso, é impossível ouvir uma notícia televisiva comemorando que não houve ‘vítimas’ quando um rebocador, com 43 mil litros de combustível, afunda em Itacoatiara, no Amazonas, pois sabemos que muitas ‘gentes’ outras são vítimas de crimes e acidentes como o descrito.
Entender a Terra como Mãe e não recurso significa entender que toda a diversidade biológica e todas as demais possibilidades de vida estão associadas ao modo de ser indígena, isso se reflete na ocupação dos nossos diferentes territórios, sejam eles nas Terras Indígenas (TI) ou nas cidades, que também são territórios. Para povos indígenas, Natureza e Cultura não se separam, pois se entrelaçam nos espaços físicos e nas relações entre as ‘gentes’. A relação entre saberes tradicionais, conhecimentos ancestrais com observação e manifestações dos espaços físicos geram dinâmicas de atualização e inovação de tecnologias. É nesse processo contínuo que se produz a criatividade científica dos povos indígenas, mas que é insistentemente silenciada e negligenciada pelo discurso de atraso econômico, pois a lógica nuclear dos povos indígenas gira em torno das vidas e não dos recursos.
É importante enfatizar que não somos povos genéricos e/ou homogêneos. Cada povo possui suas características e peculiaridades. Em nossas diferenças, conseguimos, de maneira coletiva, produzir e circular conhecimentos em diferentes e múltiplos regimes de saberes. Foram, e ainda são, esses saberes que nos permitiram e nos permitem viver em harmonia com os diferentes espaços do plano terrestre. Prova disso são nossas TIs e nossas maneiras de viver coletivamente em contexto urbano. O que não nos permite usufruir ao máximo de nossas potencialidades são as consequências da colonização.
A Amazônia Legal, que é a Amazônia do lado brasileiro, possui, em tempos atuais, mais de 800 mil indígenas, de 246 etnias diferentes, falantes de centenas de línguas, além de uma diversidade de vidas outras. Nela estão localizadas mais de 380 TIs, o que equivale a 13% do Brasil. Mesmo assim, são violência e desmatamento que predominam na Amazônia Legal. Até 2014, 15% da área total já havia sido desmatada. Estudos recentes desenvolvidos pelo Instituto Socioambiental – ISA apontam que 20% da Amazônia Legal já foi desmatada. Desse total, apenas 1% ocorre em TIs; fora delas, o desmatamento é 11 vezes maior. Ilhas de cobertura vegetal de tudo o que sobrou das florestas, ¼ está localizado dentro das TIs. Elas funcionam como barreiras para a exploração dos recursos naturais pelo setor privado.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, desde 2010, os conflitos por território mataram mais de 350 indígenas e muitos seguem ameaçados. Nos últimos 7 anos, 133 indígenas foram acolhidos pelo programa de proteção aos defensores dos direitos humanos. Os povos das amazônias profundas (indígenas, ribeirinhos e quilombolas) não apenas protegem a maior floresta tropical do planeta, eles a desenvolvem. As TIs são lares de uma imensa diversidade sociocultural e ecossistêmica. Mantê-las protegidas é garantia mínima para a manutenção do equilíbrio climático não apenas na Amazônia, mas em todo o país e em benefício comutativo com os demais biomas brasileiros.
O que é Terra Indígena – TI?
Antes da colonização, nós povos indígenas éramos nações livres com características próprias de relacionamento com o plano terrestre. Falantes de nossas línguas maternas, cada povo criava o mundo a partir de sua lógica própria de pensamento. Dessa maneira, as fronteiras e limites que conhecemos hoje são todos resultados da violência colonial. Iniciar por essa leitura é muito importante, pois foi a colonização que nos cercou em missões, que depois viraram aldeias e/ou ainda comunidades e muitas delas se tornaram os municípios e cidades que conhecemos. Nos fixar e nos colocar em um pedaço de chão foi uma estratégia de integralização dos povos indígenas. A ideia era separar os civilizados dos não civilizados. Por isso, não são indígenas apenas aqueles que nasceram ou que nascem em Terras Indígenas, mas esse é um papo para outro texto.
Pela jurisprudência estatal, uma TI é um pedaço de chão com usufruto exclusivo concedido pelo Estado Brasileiro, mas para muito além, é um direito conquistado em grandes lutas e mobilizações, e previsto na Constituição Federal de 1988. Embora já atuante em consequência do desmantelamento do Serviço de Proteção do Índio - SPI, é a Constituição de 88 que reforça que o principal órgão do governo responsável por lidar com a questão indígena deveria ser a Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI. Isso significa que a FUNAI deveria identificar, demarcar e monitorar as TIs, além de prestar apoio e proteção social, mas o cenário atual, embora seja um órgão liderado por indígenas, em geral indicados por suas bases, a FUNAI apresenta grandes limitações políticas e orçamentárias, o que inviabiliza sua atuação.
Além de reforçar a atuação da FUNAI, a Constituição de 88 determinou um tempo máximo de 5 anos para a demarcação de todas as terras indígenas em solo brasileiro, mas a prática se apresenta de maneira bastante diferente. Observe o quantitativo de terras indígenas homologadas pelos respectivos presidentes da república a partir da Constituição de 88.
Tabela 1: Quantitativo de terras indígenas homologadas pelos respectivos presidentes da república a partir da Constituição de 88.
Embora a Constituição de 88 afirme que uma das principais garantias da autonomia dos povos indígenas seja o território, o que observamos ao longo dos últimos anos é a total falta de compromisso com o cumprimento da Constituição e, mais uma vez, é o tempo da politicagem que vigora na não homologação das terras indígenas.
De acordo com recentes dados apresentados pelo ISA, hoje temos 776 TIs em diferentes fases do procedimento demarcatório. Dessas, 142 estão em processo de identificação, 46 já foram identificadas, 66 foram declaradas e 522 homologadas e reservadas.
Preservação e manutenção dentro das TIs
Sem intenção nenhuma de esgotar esse debate, trago para essa escrita apenas dois pontos dos muitos que poderiam ser citados. Além de barreira de proteção contra o avanço do desmatamento e da crise climática mundial, as TIs são grandes tapetes verdes com presença de uma biodiversidade ainda incalculável.
Como resultado dessas relações entre diferentes e múltiplas ‘gentes’, chamo a atenção para a Terra Preta, que são os solos que apresentam camadas escuras, em outras palavras, é um tipo de solo bastante fértil que é produzido pelo acúmulo de resíduos orgânicos com uso de fogo no processo de carbonização. Uma das nossas mais importantes tecnologias, a terra preta é resultado da ação antropogênica, ou seja, de técnicas humanas de manejo. Na terra preta é encontrado uma grande quantidade de fósforo, cálcio, zinco e manganês, além de estoque de carbono orgânico, o que a deixa com maior índice de fertilidade em relação aos solos adjacentes. Mas, para além de um produto de uso individual, a terra preta é sempre de uso coletivo. Ela possibilita a policultura de sabores e saberes. Nela, diferentes artefatos cerâmicos pré-colombianos vêm sendo encontrados, o que corrobora para derrubar a teoria de terra desocupada.
Além da terra preta, outro dado parece ser importante. Em novembro de 2023, considerada extinta há 40 anos, a ave Plantadora de açaí, mutum-pinima, foi encontrada na TI Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins (PA). A mutum-pinima é uma ave que vive restrita em área de mata de várzea amazônica. Ela colabora de forma fundamental para a vida humana e de muitas outras ‘gentes’. Ela leva em seu bico sementes que plantam florestas de açaí na Amazônia, o que alimenta comunidades inteiras. A ave, que já era considerada extinta, encontrou na TI Mãe Maria um espaço de refúgio e acolhimento.
É na valorização dos diferentes regimes de saberes criados e desenvolvidos pelos povos das amazônias profundas, iniciados pelos indígenas, reproduzidos e modificados pelos ribeirinhos e quilombolas, que derrubaremos o Marco Temporal. Somente dessa maneira, teremos condições de criar, manter, reproduzir e inovar práticas outras do Bom-Viver dos diferentes povos que se relacionam com esse grande corpo de mulher chamado Terra. Assim, poderemos garantir o direito de os povos indígenas serem indígenas e estarem onde quiserem, seja nas TIs ou em qualquer outro lugar. Em defesa da vida plural, não ao marco temporal!