Tendo em vista a importância das discussões acerca da mulher, convidei a historiadora brasileira Cintia Lima Crescêncio para responder a questões sobre feminismo, gênero e sua ligação com o humor gráfico. Formada em História na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Cintia tornou-se mestre e doutora em História, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo feito parte do doutorado na University of Nottingham, sob orientação de Mark Sabine. Realizou ainda o estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professora permanente no Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PPG-CHS) da Universidade Federal do ABC (UFABC), instituição em que atua no ensino de graduação e em que coordena o Núcleo de Estudos de Gênero Esperança Garcia (NEG). Realiza ainda pesquisas no Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/UFSC) e coordena o projeto de pesquisa “Uma história das artistas do traço no Brasil (1960-1990)”, com financiamento do CNPq.

Heloísa Teixeira, por muito tempo conhecida como Heloísa Buarque de Holanda, no programa “Conversa com autor”, veiculado pela rádio Mec, afirma que o feminismo, atualmente, é colocado bastante em prática. Ela acredita nisso, porque vê mulheres e movimentos que cobram resultados, não apenas “sonhos [...] [ou] revoluções futuras”. Concorda com ela?

Gostaria de destacar duas questões importantes a serem consideradas nesse tipo de comparação. Primeiro, os contextos. Os feminismos que emergem em contexto de luta pelo voto das mulheres no Brasil, por exemplo, não são como o feminismo que se organiza no momento de luta pela legalização do aborto na Argentina. Embora devamos pensar tudo isso, sempre, como resultado de processos, com inúmeras continuidades e rupturas, os lugares e os tempos são muito distintos. Segundo, feminismo sempre foi prática, sonho e revolução, não são oposições. Eu gosto muito de pensar o feminismo como gesto e, nesse sentido, não consigo conceber o feminismo sem ser prática também. O feminismo é muita coisa.

Hoje falamos feminismos, no plural, não só porque há muita diversidade no que se convencionou chamar de feminismo no singular, mas também porque é discurso, é pensamento, é movimento, é teoria, é prática. Há uma autora chamada Constância Lima Duarte que fala do feminismo como ação em defesa dos direitos das mulheres, luta contra injustiça, tanto individual quanto coletiva, portanto, um gesto que existe mesmo antes de ser nomeado como feminismo. Como historiadora tendo a historicizar os movimentos de luta das mulheres e isso me leva a entender que cada contexto define possibilidades e limites de ação. No Brasil do século XIX o uso da imprensa por mulheres que queriam falar da importância da educação para meninas era o que fazia sentido, era o viável, o possível, lembrando que este era um momento em que as mulheres sequer eram consideradas sujeitos de direitos, não eram cidadãs, sequer eram vistas como racionais. Vale lembrar que este contexto era também o contexto que escravizava homens e mulheres negras trazidos forçadamente do continente africano. No Brasil de 1970 a luta contra a ditadura, pela democracia, por uma sociedade mais justa e igualitária, era também a luta pela vida das mulheres, por saúde e por educação, mas também contra o controle dos corpos de mulheres pobres, faveladas e negras, em contexto de preocupação com a “explosão demográfica” e o volume de crianças nascidas em países pobres.

Hoje os discursos feministas circulam, nem sempre nomeados como feministas, multiplicam-se, questionando quem é o sujeito dos feminismos, provocação urgente dos transfeminismos. Para mim, feminismo sempre foi sonho, revolução e prática que se faz no tempo presente e que não pode ser pensado fora de seu contexto.

Você estudou o humor gráfico. Como ele pode ser uma forma de resistência das mulheres?

Quando surgiu meu interesse pelo tema humor, momento em que eu já pesquisava sobre história dos feminismos, acabei sendo mobilizada pelo modo como cartunistas homens notórios representavam os feminismos brasileiros dos anos 1970 e 1980. Millôr Fernandes, célebre em representações pouco honrosas para as feministas e suas reivindicações, foi o primeiro a me causar incômodo ao pensar sobre a relação entre humor e feminismo. Rachel Soihet tem uma produção muito valiosa que reflete sobre como a arte de Millôr, e de outros cartunistas e jornalistas do jornal O Pasquim, era danosa para um contexto de forte mobilização de movimentos de mulheres e feministas. Nesse tipo de produção, as mulheres e os feminismos eram motivo de chacota, de piada, eram alvo de um riso bastante violento. Incomodada com essa relação forçosa entre mulheres e humor em que nós éramos sempre o alvo e o objeto do riso, nunca as produtoras ou protagonistas do riso, comecei um trabalho de busca de humor gráfico produzido a partir de uma perspectiva feminista.

Por muito tempo a ideia do humor gráfico produzido por mulheres como forma de resistência me acompanhou, porque nesse esforço de pensar esse humor gráfico feminista, majoritariamente produzido por mulheres, senti a necessidade de elaborar um conceito de humor feminista que tinha como tônica a “resistência”. E acredito, de fato, que o humor gráfico feminista é sim uma forma de resistir, por questionar quem produz, quem ri, e quem é alvo de um riso maldoso, destruidor. Mas não só. O humor feminista, esteja ele presente no cartum, na literatura, no cinema, organiza-se a partir de uma premissa distinta, ele sublinha estruturas desiguais e injustas, denuncia o machismo, a misoginia. Nesse sentido, gosto de pensar o humor feminista como revolucionário e transformador, é uma proposta de mundo em que o resistir é uma parte do sonhar e o agir, mas não o todo.