No livro Rasura-me ou te devoro1, na parte em que há o diálogo com expressões artísticas distintas, persiste a oscilação entre opostos e a construção da ambiguidade, traços definidores do livro. Dessa forma, no poema A onda, com base nas obras de Camille Claudel e de Wislawa Szymborska, é captado o momento que está entre a vida e a não vida – o quase –, como se a própria obra pudesse reter o tempo e a onda que se atira sobre as três meninas da obra de Camille, retomando o tema do poder da arte, como aparece no poema de Wislawa Szymborska – Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum/ atenta no silêncio pintado/ dia após dia derrama/ o leite da jarra na tigela,/ o Mundo não merece/ o fim do mundo. Também está a ambiguidade em Nostalgia da luz que, no diálogo com o filme de Patricio Guzmán, percebe as estrelas sobre o deserto, ossos e astros irmanados pela mesma luz que cega e, ao mesmo tempo, ilumina.
A relação entre o corpo e a paisagem, que podem, muitas vezes se misturar, percorre todo o livro, numa definição do poético. O movimento do sujeito lírico que, de acordo com Collot, fala da própria subjetividade, na medida em que sai de si e apreende a paisagem, é perceptível nos poemas de Danilo. Quando vi o mar, por exemplo, na parte Enigma do céu, fala da apreensão do belo na paisagem, mostrando a consciência de que ele existe antes das palavras, podendo ser percebido pelo eu, ao ser envolto na vertigem azulada/ sem dizer nada, aproximando-se, assim, num diálogo, de versos do poeta Fabrício Corsaletti, em que o azul do céu é o poético sem mediação – olho e céu se entendem/ você [a parte racional] fica do lado de fora. Nomear o belo seria rasurá-lo, o que se faz, no entanto, a cada poema, atingindo-se, por meio da palavra, a tradução possível da comoção poética e de seu enigma – Se a gramática da noite revelasse/ as regras estelares da sua estrutura/ o que saberíamos da gravidade azul das aves?.
A relação do eu e do mundo aparece, na parte Enigma das enigmas, na relação entre o eu e o outro, em poemas amorosos. Ali, numa alquimia de enigmas, a palavra cria metamorfoses, na medida em que se constrói o rosto de quem se ama, a partir das pedras entregues pela vida. A metamorfose está também nas palavras que, no jogo das letras, vão se tornando outras, mas ligando-se por meio da sonoridade – Tenho pena dos que não te amaram/ e perderam/ a pedra do teu riso caindo/ vertiginosamente/ pelos ouvidos/ Pena. Nessa parte, é o amado que se contrapõe às agruras da vida e à violência na escuridão dos becos, na medida em que é capaz de fazer queimar o gelo acumulado no eu, derreter o sol, no chão azulado do quarto, ao som de Kate Bush, enquanto os dois, num lugar além do mundo, dançam como dois equilibristas/ sobre as estacas da vida. É no ambiente da casa que os dois se refugiam, quando precisam defender-se do cenário de guerra que toma a sociedade brasileira, no poema Presença, em que há a construção do abrigo, feito de coisas cotidianas – Você fazia o macarrão. Nesses poemas, o homem ao lado é a única pessoa não partida, no mundo, parte da paisagem desejada pelo eu – Será que você era o parque?.
Se nos outros grupos a experimentação do poético que se dá por meio do encontro do eu e do mundo, nos poemas do grupo final, há a reflexão explícita acerca do fazer artístico. Nessa parte, num pomar de imagens, o poeta procura a poesia, como no poema de Drummond, buscando imagens inventadas, semelhantes às palavras em estado de dicionário. Nele, a ambiguidade, traço fundamental do livro, continua, já que os frutos desejados são os mais carnosos e, ao mesmo tempo, os mais gasosos, palavras de campos semânticos opostos que, no entanto, se ligam por meio da rima. Nesse grupo, o poeta gauche, marcado pela sina, revela o próprio pescoço degolado, de onde pode sair, a qualquer momento, o canto de galo, rubro, como no poema Galo Galo, de Ferreira Gullar. O eu lírico, apesar da consciência da asa que quebra e de todos os destroços da vida, carrega o sangue de poeta, num coração bombeado por palavras. Consciente de que escrever é rasurar o mundo, mesmo no sentido de dialogar de maneira intertextual com outros poetas ou outras obras de arte, transformando a relação com o outro em palavras, assim como consciente de que escrever é rasurar a própria poesia, sob a urgência dada pelo poema – Escreva-me agora/ Rasura-me ou te devoro –, o poeta oferece essa escrita da rasura, oferenda e oblação ambígua, já que detentora de uma rachadura visível/ entre o sonho e o sentido. Por meio dela o leitor atento pode encontrar o absoluto assombro.
1 Fernandes, Danilo Santos. Rasura-me ou te devoro. São Paulo: Libertinagem, 2022.