Especialistas de todo o mundo exploram os múltiplos significados sobre O Livro Vermelho de Carl Gustav Jung (1875-1961), assim conhecido pela cor da capa de couro do manuscrito, que permaneceu inédito até 2009. Em suas páginas iniciais, Jung tem um tom muito comparável ao das invocações de Deus por Santo Agostinho em Confissões, obra do século IV, que foi um dos marcos culturais da transição da Antiguidade para a Idade Média.
No livro, Agostinho questiona suas dúvidas sobre a existência de Deus e sua influência sobre outras religiões; seu amor ao orgulho e ao sexo (especialmente sexo). Agostinho diz que nem todos desejam ser felizes, pois não buscam a alegria que vem de Deus que para ele é, portanto, a única felicidade. Aquele, porém, que busca a verdadeira alegria, busca viver na verdade, pois a felicidade provém da verdade.
O Livro Vermelho contém o registro de um confronto com o inconsciente do próprio Jung, que se estendeu de 1913 a 1930. Iniciada logo após a traumática ruptura com Freud, essa foi uma jornada constituída de exercícios de imaginação ativa, como Jung os conceituaria mais tarde, em que se viu chamado pelo espírito da profundeza, ou um mergulho em suas sombras.
Em sua obra, trava diálogos com figuras como Elias, profeta do Antigo Testamento, e Salomé, a sensual algoz de João Batista, nos Evangelhos. Outros personagens fundamentais são o gigante oriental Izdubar e um mago de nome Filêmon — com quem Jung chegava a fazer passeios pelo jardim de sua casa enquanto recebia as lições dele.
O registro dessa verdadeira nekya (descida ao mundo das trevas, ao estilo de Ulisses na Odisseia, ou de Dante na Divina Comédia) foi acompanhado pela elaboração de pinturas impressionantes, cuja força estética levou O Livro Vermelho a ser exposto com destaque em 2013, na Bienal de Veneza. A linguagem com que Jung articula sua visão teleológica da História não tem medo de recorrer a fontes como a astrologia e a alquimia. O Livro Vermelho seria antídoto em uma sociedade que cada vez mais adoece desenvolvendo uma série de tipos de transtornos.
Jung chegou a temer por sua sanidade naquele difícil período de sua vida. No entanto, a eclosão da Primeira Guerra lhe trouxe a certeza de que suas visões apocalípticas não eram prenúncio de sua desintegração mental, mas uma revelação divina, ou melhor, arquetípica, do desastre coletivo. Também foi essencial contar com o que chamou de sua vida diurna junto aos parentes, pacientes e colegas, enquanto enfrentava a sós a noite escura da alma, como diria São João da Cruz, um dos maiores místicos espanhóis, sacerdote e fundador dos Carmelitas Descalços, sendo um dos Doutores da Igreja Católica Apostólica Romana.
É importante estarmos conectados com a nossa vida pessoal, material e espiritual, para mantermos uma mente em equilíbrio, e enfrentarmos a nossa própria escuridão, ou as nossas sombras, como denominava:
Quando vives no teu nível profundo a vida comum, tomas consciência de teu si-mesmo.
Anota em O Livro Vermelho, numa possível tradução psicológica do preceito hindu da devoção espiritual que não foge das tarefas no mundo. Uma conexão entre o processo de Jung e os diálogos em que Krishna convoca o discípulo Arjuna a cumprir com coragem e desapego sua missão, no Bhagavad Gita.
Na célebre entrevista que deu à BBC perto do fim de sua vida, Jung disse sobre a existência de Deus:
Eu não acredito, eu sei.
Assim, sintetizava a diferença entre a atitude espiritual de crentes e a de gnósticos. A gnose é um conhecimento de tipo intuitivo, direto, não mediado por padres ou pastores, e que se permite suportar a revelação de que o demiurgo regente deste mundo não é exatamente o Deus justo e bondoso do catecismo. Em episódio crucial do Livro Vermelho, Filêmon prega sete sermões gnósticos a mortos que voltavam de Jerusalém, onde não haviam encontrado o que buscavam. Esses mortos simbolizam cristãos decepcionados com a fé tradicional, incapaz de dar conta de questões como o escândalo do mal.
Diante de tantos estudos e aprofundamentos, C.G. Jung nos fala do inconsciente, como essencial para a busca do equilíbrio e o encontro com a felicidade, ao nos confrontarmos com a verdade, assim como com qual seria essa verdade sobre o equilíbrio da mente e a realização do Ser em busca de ser feliz. Essa verdade se resume na capacidade de aceitar o bem e o mal dentro de nós, a luz e a sombra, uma dualidade que vivemos. Se tivermos que rever todos os estudos de felicidade e as obras de Jung, diríamos que a felicidade é parte de momentos de alegrias e parte também de nossas tristezas. A felicidade seria então o saber lidar também com as desavenças da vida.
Não podemos viver no mundo dos contos de fadas, acreditando que a sombra vai ficar sempre adormecida em nosso inconsciente. Felicidade é ter coragem de enfrentar nossa sombra e sermos vitoriosos nessa conquista para admirar a vida com realidade, nos conectando com a vida pessoal, material e espiritual. Em sua obra, e em sua vida, o próprio Jung entende que o confronto com a nossa sombra e a compreensão da dualidade, bem e mal dentro de nós, são necessários para vivenciar a experiência de ser feliz e o encontro com o si-mesmo.