Lembram-se de Platão, dos diálogos? Imaginem duas pessoas à conversa, enquanto andam numa cidade. Imaginem também, já agora, um autor com a mania de contar histórias a escrever um artigo mais ou menos sério para uma revista. Leram o título? Vai ser apresentada uma teoria sem base ou investigação científica.
Este texto é resultado de especulação a partir de observações do quotidiano e de leituras desordenadas. Apresentar ideias através de histórias em vez de ensaios é muito mais divertido para quem escreve e, espera-se, mais cativante para a leitura.
Estas duas pessoas chamam-se Rute e Eduardo. Os nomes vieram ao acaso. Poderei dar-lhes atributos físicos para tornar mais vívida a exposição de ideias. As idades são indefinidas, algures entre os trinta e os cinquenta. São parte da população activa. Ambos tendem para o gorduchinho. Ela pintou madeixas no cabelo e ele tem um daqueles bigodes farfalhudos que acumulam caspa. Devia rapá lo.
— Explica lá melhor — pedia Eduardo, carregando no botão do semáforo de uma passagem de peões. — Dizes que o trabalho precário é a ditadura do século XXI. A minha tendência é para concordar, mas o trabalho quase sempre foi precário ao longo dos séculos.
— Neste século já não devia ser.
— Nem no século passado. Estamos de acordo. E a parte da ditadura? O que queres dizer ao certo?
Rute ergueu os olhos para o céu nublado. Estava terrivelmente cansada depois de um dia de trabalho e construir um discurso coerente exigia algum esforço.
— O trabalho precário é a ditadura do século XXI por ser o método preferido dos governos e dos patrões para o exercício de poder.
— O trabalho precário é um método para o exercício de poder?
— Podes crer que é. Olha para a nossa vida, sempre com a corda ao pescoço. Primeiro, temos a hipoteca da habitação a levar-nos dois terços do ordenado todos os meses. Segundo, nunca sabemos quanto tempo vai durar o nosso emprego nem quando vamos encontrar o próximo. Com o medo de perder a casa, de passar fome, para não mencionar o medo de não conseguir alimentar, educar e tratar os nossos filhos, submetemo-nos a todo o tipo de abusos.
— Horários rotativos, turnos nocturnos, excesso de horas de trabalho e ordenados miseráveis — nomeou Eduardo, contando pelos dedos. — De facto, é uma ditadura.
O semáforo mudou e atravessaram a rua. Havia bastante gente e trânsito, no longo regresso a casa.
— O propósito desta ditadura — tentava explicar Rute, acelerando o passo — é escravizar a maior parte da população, colocando-a ao serviço de uma alegada elite que quer viver desafogada.
— Esse é o propósito de todas as ditaduras. Aí não há novidade.
— É exactamente esse o ponto! O que se está a passar agora, no século XXI, nesta época de alta tecnologia, computadores e telemóveis por todo o lado, inteligência artificial galopante, robótica, drones, câmaras, redes sociais, partilha e venda de dados pessoais para encher os bolsos de multimilionários com mais dinheiro do que países inteiros, nada tem de novo! É muito triste.
— Para dar requinte ao pesadelo, tudo isto é feito com uma propaganda agressiva sobre as virtudes de ter uma vida rica em desafios, a felicidade de ser proactivo, dinâmico, membro entusiasta de equipas e grupos, capaz de executar montes de tarefas em simultâneo, propaganda sobre o orgulho de ser um vencedor cheio de talentos. — Eduardo também olhou para o céu nublado. Não tardaria a chover. Sentiu medo, como se os pingos de chuva lhe ameaçassem a vida.
Rute continuou o raciocínio.
— Falam em democracia e direitos humanos, e ao mesmo tempo estipulam que para receber um salário que cubra as despesas de sobrevivência é necessário de abdicar do direito ao descanso. E esta lavagem cerebral começa logo na escolinha! Abdicar de viver, abdicar da juventude por um futuro de prosperidade e segurança. Aprende a ser escravo se quiseres sair de casa dos teus pais quando fores adulto.
— Pais também com a corda da hipoteca ao pescoço.
— Claro. O poder é exercido sobre famílias inteiras ao longo de gerações. É como te digo. Os governos e os empresários adoram a precariedade. Pouco importa se são de esquerda ou de direita ou se os regimes políticos são ditaduras ou democracias. Até pouco importa a rotatividade dos perpetradores deste esclavagismo. Muitos dos escravos de hoje ambicionam tornar-se nos ditadores de amanhã.
— Os dirigentes sindicais são um óptimo exemplo disso. — Eduardo parou, desanimado com o que acabara de dizer. — Isto é mesmo cada um por si, para si e mais ninguém. A lei da selva, sempre, pouco importa a aparência da civilização ao longo do tempo.
Estavam na entrada de um jardim que costumavam atravessar, poupando caminho. Funcionava como um analgésico diário. Começava a cair uma chuva molha-tolos. Eduardo tremeu, arrepiado. Rute erguia a carteira para proteger o cabelo. Fizera as madeixas no fim-de-semana anterior enquanto Rogério, o marido, gastava uma fortuna ao levar os miúdos ao jardim zoológico. Eles nem sequer tinham gostado da bicharada.
— Sim, vivemos na selva — concordou, dando uma pancadinha nas costas de Eduardo. — Tudo se resume ao conflito entre fortes e fracos. Os líderes só se tornam líderes por gostarem de liderar. As alegadas preocupações sociais não passam de propaganda para obter e consolidar a liderança.
Eduardo encolheu os ombros, acrescentando:
— E o método actual de exercício de liderança é o trabalho precário, é isso?
— Nem mais. Se em tempos era o medo de ser assassinado que subjugava um indivíduo, agora é o medo do desemprego.
— Sempre houve medo do desemprego, acho eu.
— Sempre houve medo da fome, da morte e do desconforto. O desemprego acarreta os três.
O caminho de asfalto começava a tornar se escorregadio, obrigando-os a abrandar. Eduardo levantou a gola do casaco e passou as mãos pelo pouco cabelo que lhe cobria a calva.
— O mais irritante na propaganda é ela estar por todo o lado, mesmo nos círculos mais íntimos. Os meus amigos passam o tempo a vomitar os lugares-comuns bebidos na comunicação e nas redes sociais. Que carneirada!
— A comunicação e as redes sociais servem mesmo para isso. Já não existe jornalismo. Se calhar nunca houve, no estado puro. Só existem influenciadores.
— Exacto. É cada vez mais difícil encontrar instituições credíveis, dedicadas ao esclarecimento, à divulgação da verdade, independentemente de modas e de interesses económicos. Está tudo viciado.
Rute não conseguiu evitar um sorriso.
— Está tudo viciado no jogo do trabalho precário! — Abriu os braços e deixou a chuva molha tolos gelar lhe a testa. — É hossível. Enchem-nos olhos e ouvidos com a ideia de que temos o dever de nos tornarmos indivíduos extraordinários, positivos, empreendedores, criativos, vencedores. Direitos elementares como a habitação e a alimentação tornaram-se prémios.
— Um emprego estável só surge ao fim de dúzias de prémios de desempenho. — Eduardo levou o dedo indicador à têmpora e dobrou o polegar. — Dá vontade de dar um tiro na cabeça.
— Não faltam suicídios por aí.
— A comunicação social depois diz que não se sabem os motivos. Esforçam-se imenso para manter um nível de alheamento e estupidez generalizada.
— É mesmo isso, Eduardo. — Limpando a testa com as costas da mão, Rute voltou a erguer a carteira para se proteger. — Até se dão ao trabalho de apresentar como excitantes empregos, oficinas de formação e mesmo cursos superiores cada vez mais estúpidos. As universidades transformaram-se em fábricas de operários altamente especializados em tarefas repetitivas de uma extensíssima linha de produção. Chamam inteligência e genialidade à especialização. Quanto mais redutor, melhor.
— O mais perverso é construírem pacotes de dinâmicas sociais nos empregos para darem a impressão de dinamizarem a coisa.
— Recreios, ao fim e ao cabo. Estou farta de convívios, lanchinhos, jogos de equipa e sei lá que mais. Deixem-me sossegada.
— Até são dados prémios a empresas que oferecem o pequeno almoço nas suas instalações. — Eduardo apoiou se no corrimão de uma escadaria de pedra, repleta de gente com pressa de chegar a casa. — Não quero o vosso pequeno-almoço, muito obrigado. Quero estar sossegado, em casa, com a minha mulher e os meus filhos. Quero trabalhar menos horas e ser bem pago, se faz favor.
— De preferência, sem o receio de ir parar ao desemprego de um dia para o outro. — Rute começou a descer as escadas. — Políticos e empresários, são todos farinha do mesmo saco. Querem dinheiro, poder e glória, ao mais baixo custo possível. Só manifestam alguma preocupação por quem escravizam quando sentem o perigo de perder dinheiro ou popularidade. Basta ver a quantidade de empresas que monta sucursais em países que não respeitam os direitos humanos. É dinheiro a rodos a entrar à custa de trabalho escravo. Conseguem deste modo baixar o preço de venda dos produtos para os escravos menos baratos, dos países democráticos como o nosso, consumirem sofregamente. Pagam-nos ordenados baixos para depois os receberem de volta com o nosso consumo. Nunca perdem.
— Fazem nos cúmplices da escravatura. Somos escravos de primeira a beneficiar do abuso de escravos de segunda.
— É mais ou menos isso. Estamo-nos nas tintas para os outros escravos, porque fazem produtos baratos dos quais não queremos abdicar. Até engolimos a ideia de que estamos a ajudá-los ao comprarmos os produtos, tal é o nosso nível de estupidez.
Eduardo cofiou o bigode.
— Pois é. O trabalho precário torna-nos estúpidos a esse ponto. Ao manterem os nossos ordenados baixos e os empregos inseguros, tornam-nos dispostos a abusar dos escravos que fabricam produtos baratos. Tudo o que nos interessa é pagar menos.
— Exacto. Também somos farinha do saco dos políticos e dos empresários.
— Devemos ser a versão sem fermento.
Vamos deixar as duas personagens descer as escadas e atravessar o jardim. A ideia está veiculada. O trabalho precário é o método de exercício de ditadura em voga nas nossas alegadas democracias. Nós fazemos parte desta forma de esclavagismo, como vítimas e cúmplices. Cada vez que olho para o céu, mesmo nos dias de sol, sinto sempre, na minha testa, o gelo da chuva molha-tolos.