Diagrama para Atentado (ou como explicar a síndrome de Gerstmann para coelhos e patos).
Na sala do acervo médico do Museu Santa Casa de São Paulo, localizado no Hospital Central da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, expõem-se equipamentos e artefatos antigos relacionados a especialidades clínicas e cirúrgicas pertencentes à história dessa instituição de saúde. Ali mostra-se também uma ilustração que retrata o atentado de 1897 contra o então presidente do Brasil, Prudente de Moraes. No espaço de exposição da Galeria Jaqueline Martins expõe-se uma série de elementos cuja escolha e composição advêm de uma interpretação dessa ilustração. Ambas as salas possuem lógicas expositivas complementares e os objetos apresentados nelas encontram os seus correspondentes formais, simbólicos e/ou semânticos nas peças do outro espaço. Tais correspondências são aprofundadas nas informações compiladas no fichário disponível para consulta no Museu
A ilustração, publicada num jornal de sátira política da época, é a única imagem que retrata a tentativa de assassinato a Prudente de Moraes,o primeiro presidente por eleição direta do Brasil e o primeiro civil a assumir o cargo. [iii] O desenho mostra o episódio do dia 5 de Novembro de 1897, durante uma cerimônia militar no Rio de Janeiro na qual o presidente recepcionaria os batalhões que retornavam vitoriosos da recém-acabada Guerra de Canudos. Reza a história que durante esse evento, um soldado, Marcellino Bispo de Melo, saiu da multidão e avançou contra Prudente de Moraes, apontando-lhe um revólver ao peito. Acionou o gatilho algumas vezes mas a arma inexplicavelmente falhou. Com a sua cartola, qual passe de mágica, o presidente desviou a mão armada do agressor. Este foi rapidamente agarrado por membros da comitiva presidencial mas ainda assim conseguiu puxar de um punhal e lançar-se sobre o presidente. Marcellino acabou por golpear fatalmente o Ministro da Guerra, Machado Bittencourt pois este protegia Prudente de Moraes, que escapou ileso. O soldado agressor foi preso e tempos depois encontrado enforcado na cadeia. Especula-se que ele tenha sido apenas uma peça de uma conspiração política maior, encabeçada pelo então vice-presidente Manuel Vitorino Pereira.
O “diagnóstico”da ilustração que documenta o atentado à vida do presidente faz-se através da correlação entre um grupo de artefatos destinados à preservação da vida e saúde, e uma série de objetos que transcendem a esfera prática dos usos. O primeiro grupo, os equipamentos médicos exibidos no acervo do Museu Santa Casa, não só narra a memória dessa instituição mas também remete a uma noção mais ampla da relação entre o Homem, a Ciência e a tecnologia em prol de um “bem-comum”. A “verdade”, o “conhecimento” e o “rigor científico” exalam da estrutura classificatória e padronizada que rege a disposição dos equipamentos pela sala. Um sistema de rótulos e verbetes interpõe-se entre as coisas e o espectador, funcionando como uma lente que mitiga a opacidade do discurso médico e orienta a interpretação leiga. Os artefatos expostos têm as suas funções firmemente definidas a partir dos códigos (objetivos, neutros e universais) das convenções médicas de outrora.Paradoxalmente, os significados atuais desses objetos não são mais “fixos”, já que a peculiaridade das suas formas e o seu estado de obsolescência possibilitam inúmeras outras interpretações e associações que escapam ao determinismo científico.
A ilustração do atentado a Prudente de Moraes é exposta aos visitantes do acervo médico encaixada num aparelho de raio-x de 1920, tal qual uma radiografia. Na chapa radiográfica as estruturas internas de um corpo aparecem sobrepostas no plano bidimensional. A imagem revela o invisível mas a justaposição das partes oculta determinadas relações entre elas. A “dissecação” da ilustração do atentado é “tridimensionalizada” na sala de exposição da galeria Jaqueline Martins, mas, contrariamente a uma “reconstituição da cena do crime,” ali não se efetua uma reprodução simulada dos fatos. Os sujeitos, objetos e ações representados na ilustração são citados através da combinação de objetos/imagens reconhecíveis com outros elementos cujo sentido é indeterminado. As explicações prescritivas escapam aos textos que se interpõem entre os objetos e o espectador. As coisas e suas associações não procuram significados “fixos” nem se guiam por parâmetros objetivos. Mas a sua presença no espaço (neutro, a-histórico e universal) da galeria de arte, lhes garante uma filiação a uma série de convenções legitimadas outrora. A lógica interna a cada um dos elementos e a estratégia de organização do “todo” esboçam correspondências com a sala do acervo médico do Museu, mas simultaneamente recusam uma sobreposição exata.
Esse “deslizamento” cria fissuras e lapsos na justaposição mental de ambos espaços e propõe formas de “ver-além” das narrativas dadas pela ilustração do atentado de Prudente deMoraes. A correlação entre coisas de tempos e temas aparentemente desconexos revisita tanto a história oficial quanto o imaginário social coletivo; alude a crenças e mitos populares assim como aos cânones da História da Arte; cita o rigor científico mas também beira o ocultismo; expõe determinados assuntos enquanto encobre outros, e possibilita a ponderação sobre situações cujas relações de causalidade não se podem comprovar de forma estritamente objetiva ou factual. Relações que não têm lugar nas narrativas oficiais, nos compêndios de ciência, na historiografia positivista, na atual economia das imagens, nem na crescente polarização de posições e opiniões.
A vontade de “ver-além-de” está na gênese de vários equipamentos médicos e científicos, mas as capacidades projetivas e subjetivas da visão escapam ao diagnóstico dos aparelhos oftalmológicos, predominantes na sala do acervo médico do Museu. Fenômenos cognitivos de percepção tais como a capacidade de enxergar formas ou mensagens em lugares onde não foram inscritas intencionalmente, ou em discernir padrões, significados e conexões em configurações aparentemente aleatórias, foram, durante séculos, consideradas pela ciência médica como sendo perdas de contato com a realidade ou como sintomas de psicose e de outras patologias mentais. Tais interpretações para “além da imagem” podem ocorrer em indivíduos física e mentalmente saudáveis e levá-los a uma adesão cega a uma hipótese que passa a ser considerada como verdade sem qualquer tipo de critério objetivo de verificação. Em contrapartida, podem também configurar-se como estratégias para engendrar alternativas críticas aos esquemas prevalecentes num determinado contexto. Dado que toda crítica das condições atuais depende da premissa básica de que a realidade poderia ser diferente, como é que tais projeções interpretativas das percepções podem ser desenvolvidas como parte de um engajamento efetivo? Onde e como se nutre a capacidade de enxergar além do que supostamente devemos ver? Como é que se provoca um modo deliberadamente “oblíquo” de olhar? E quais são as suas consequências?
Um dia talvez saberão que não havia arte, mas apenas medicina.
A síndrome de Gerstmann é um distúrbio neurológico caracterizado por quatro sintomas principais: dificuldade de se expressar pela escrita; dificuldade de compreender matemática;incapacidade de distinguir os dedos das mãos e a desorientação em relação à esquerda e à direita. / A ilusão do pato-coelho é uma imagem ambígua que ora parece um pato ora um coelho. A primeira versão foi publicada na revista de humor alemã Fliegende Blatter (Out. 23, 1892,p.147).